Edmir Saint-Clair

A TERNURA - Rubem Alves

 

“Pureza de coração é desejar uma só coisa.” Foi assim que Kierkegaard definiu, a pureza. Puro é aquilo em que não há misturas; é uma coisa só.

A paixão é pura porque vive de uma coisa só: a imagem da pessoa amada. Não se trata de uma imagem mais bonita que as outras. É uma única imagem que apaga todas as outras. O apaixonado só pensa na pessoa amada. Sempre. Os assuntos que fazem as conversas do cotidiano não lhe interessam. Bem que ele gostaria de falar sobre o seu amor, mas se cala sabendo que ririam dele. Camões, no episódio de Inês de Castro, escreveu que ela caminhava

Aos montes ensinando e às ervinhas

O nome que no peito escrito tinhas.

Se não havia ouvidos humanos a quem pudesse dizer o nome que tinha gravado no peito, que as árvores, a relva e as pedras fossem depositárias do seu segredo – um único nome.

A raposa pediu que o Pequeno Príncipe a cativasse.

– Que quer dizer “cativar”? — ele perguntou.

A raposa explicou:

– Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, a cada dia, te sentarás mais perto… Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!

Aconteceu então que o Pequeno Príncipe cativou a raposa. O tempo passou e chegou o dia em que ele precisou partir. A raposa disse:

– Ah! Eu vou chorar.

– A culpa é tua; eu não te queria fazer mal, mas tu quiseste que eu te cativasse…

– Quis — disse a raposa.

– Mas tu vais chorar!

– Vou — ela respondeu.

– Então, não sais lucrando nada!

– Eu lucro — disse ela — por causa da cor do trigo. — E acrescentou: – Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo…

O amor começa quando colocamos uma metáfora poética no rosto da pessoa amada. A paixão é uma experiência estética. Está ligada à contemplação da beleza. A pessoa pela qual se está apaixonado é bela. Não é que ela seja bela – é o olhar apaixonado que a torna assim. Porque não vemos o que vemos, vemos o que somos. Uma mulher é bela quando nos vemos belos ao seu olhar. Quem, ao olhar para uma mulher, pensa em sexo não é um apaixonado.

O apaixonado sorri ao contemplar a amada dormindo, sem tocá-la. O corpo de lado, o rosto sobre o travesseiro, os olhos fechados, o suave ressonar, a camisola suspensa deixando ver a calcinha – é uma imagem de paz, de tranquilidade. E um momento de ternura. Há um desejo de acariciá-la, mas a mão se contém; nenhum movimento dele deverá interromper a beleza da cena. Nela, os impulsos sexuais estão proibidos.

O sexo dos adolescentes e dos jovens se parece com um furúnculo inchado – túrgido, vermelho, dolorido, que busca se livrar do incômodo. O que se busca não é a experiência amorosa, é rasgar o furúnculo para que o pus saia, trazendo alívio. E o esperma não se parece com pus? Quando o orgasmo acontece, numa mistura de dor e prazer, o furúnculo se esvazia e o corpo fica em paz. Pode até ser que nesse momento o parceiro se esqueça da mulher ao seu lado, vire as costas para ela e durma.

Foi sobre esse sexo que Freud escreveu. Era o único que ele conhecia. Era o sexo que Tomas, personagem de A insustentável leveza do ser, fazia com suas namoradas. Mas uma delas protestava: “não procuro o prazer, procuro a alegria…”.

O sexo-furúnculo prescinde da ternura. Tomas não sentia ternura por suas amantes. Elas eram objetos para seu alívio. Ele as usava. Não as amava. O amor mora no olhar terno que sorri ao contemplar o rosto da pessoa amada.

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Um comentário:

  1. O que me prende ainda aos blogues são textos desta relevância e profundidade intelectual!
    Belíssima postagem.
    Sou seu antigo seguidor e venho convidá-la para analisar junto com todos essa nova onda do OLD MONEY exposta no nosso blog FALANDO SÉRIO.
    É a grande ferida da sociedade, um verdadeiro tapa na nossa cara.
    Se puder comente.
    Um abração carioca.

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