Mesmo que o conceito de família, como se tem muito noticiado, não viesse sofrendo mudanças ocasionadas por novos valores, as descobertas da ciência imporiam - e já começaram a impor - alterações jurídicas complicadas, que a gente ainda não sabe direito em que é que vão dar. Agora mesmo, ouvi a observação casual de uma comentarista de tevê, segundo a qual o aluguel de uma boa barriga está em torno de 200 mil reais. É claro que deve haver normas e conceitos aplicáveis a essa locação e as consequências de abdicar do sonho da barriga própria também terão implicações legais.
Por exemplo, o aluguel da barriga envolve somente a obrigação de portar o feto no útero e parir, mais nada? A locadora não tem também de amamentar a criança, ou isso seria classificado como adicional de peito e pago separadamente? É válido o contrato que não garanta à criança esse direito? Incorrerá a locadora no delito de negação de peito, caso a locatária não possa arcar com as despesas extras? O preço da barriga é social e, nos casos de locatárias de baixa renda, deve ser subsidiado pelo Estado? Os custos dos cuidados pré-natais são, como as taxas de condomínio, responsabilidade da locatária? Como distinguir um mal-estar causado pela gravidez de outro, que não tenha a ver com ela? Em caso de defeito no produto final, será sempre possível diferençar um problema originado dos pais biológicos daquele advindo de alguma imprudência ou acidente de responsabilidade da locadora? Haverá seguro compulsório? Cabe indenização, cabe devolução do produto, cabe queixa ao Procon? No caso de a criança vir a ser rejeitada e oferecida para adoção, a locadora tem preferência?
Irmão de barriga será uma das novas categorias, provavelmente com a designação politicamente correta de "irmão couterino". Caberá à lei estabelecer se isso implica algum grau de parentesco, além de definir outros pontos delicados, como, por exemplo, se todos os couterinos terão direito a chamar a dona da barriga de aluguel de "mamãe", detalhe que parece simples, mas logo se vê que não é, quando se levam em conta aspectos psicológicos e de vida social. E até ocorrências triviais talvez necessitem revisão, como no caso de xingamentos, pois poderá haver discussão sobre se ambas as mães, ou somente uma delas, poderão considerar-se injuriadas, difamadas ou caluniadas, quando objeto de alguma ofensa.
Como sabem os leitores das páginas de ciência dos jornais, os avanços nessa área estão longe de limitar-se à hoje quase corriqueira barriga de aluguel. Já é possível "produzir" uma criança com material genético de um ou mais pais e/ou mães. Não sem razão, os cientistas empenhados nesse campo argumentam que, assim, podem substituir genes defeituosos que seriam herdados, por outros, de genitores excluídos desse risco. E esse interesse é suficiente para estimular a pesquisa. Teremos, portanto, mais dia menos dia, a figura de outro "co", no caso o copai ou a comãe.
Pensar nos parentescos possíveis, a partir somente disso aí, já deixa o sujeito zonzo. Dá pena do advogado formado no tempo do "mater certa, pater sempre incertus", quando uma boa ação de investigação de paternidade era uma aventura de suspense e emoção e não essa coisa sensaborona e sem arte, exame de DNA. Daqui a pouco, vai-se ver com problemas de patrimônio e sucessão antes inimagináveis. Haverá meios-irmãos por parte de pai e por parte de mãe, ou por ambos, e a confusão já começará no registro civil. Quando chegar a alguma herança, declarar-se-á um aranzel jurídico indescritível, em que vai ser difícil alguém tomar pé.
Até porque os, digamos, multiparentescos não vão limitar-se a um genitor extra em cada caso. Na verdade, não é absurdo prever-se que material genético de vários "colaboradores", de ambos os sexos, poderão vir a ser utilizados na produção ou "aperfeiçoamento" genético de um embrião humano. Ou seja, é possível que haja um filho de diversos pais e mães, uma obra coletiva, por assim falar. Não deixa de ser uma ideia curiosa e não hão de faltar comitês de amigos que se unam para perpetuar-se como grupo, na figura de um único rebento, que, para acabar de enlouquecer o advogado, usará uma barriga de aluguel. Creio já poder adivinhar que o bebê assim produzido será chamado de "poligênico", sua figura paterna será um álbum e seu Édipo terá um harém. Com toda a certeza, pelo menos uma torcida organizada criará um menino com material genético doado pelos craques do clube - e o menino receberá o nome de Cocktailson, comerá a bola desde os 5 anos de idade e passará oito minutos dedicando seu primeiro gol como profissional à família.
Finalmente, nestes tempos em que essa festinha de suspender impostos a qualquer hora vai ter que acabar e cairemos na real, é alentador ver as primeiras manifestações do que certamente será uma próspera economia, geradora de empregos e oportunidades. Em relação às barrigas de aluguel, o mínimo que se pode antecipar é a institucionalização da profissão de corretor de barriga, que deverá trazer segurança para os interessados, além de alguma ordem para um mercado que, do contrário, poderia ficar à mercê de aproveitadores e monopolistas. E serão eles os primeiros grandes clientes dos cadernos especiais que os jornais, da mesma forma que em relação a carros e imóveis, passarão a publicar, com anúncios e matérias envolvendo desde a cotação do sêmen e do óvulo de primeira até ofertas de excedentes de produção, pontas de estoque, etc. Só não creio que veiculem anúncios de um DNA com características que dificultem seu receptor vir a ser um adulto corrupto. Não há mercado, todo mundo pensa no futuro de seus filhos.