Vivemos na atualidade o culto ao sofrimento. Tanto o que resulta de motivos concretos como o desamparo e a violência, quanto o que advém da experiência da angústia em relação à própria vida, uma espécie de convivência com o nada cada vez mais facilitada pela forma de vida em que nenhuma esfera nos dá garantia de sentido. Aprendemos, em nossa cultura, a viver com o sofrimento ao ponto de dar sentido a ele ou até mesmo gozar por meio dele. É um modo de se sobreviver ao nonsense. Muitos são felizes porque são infelizes. Eis um paradoxo nada difícil de compreender em nosso tempo.
A dor parece ser mais do que sintoma corpóreo, ela parece residir na alma, a instância abstrata que agrega sentimentos sempre de certo modo inacessíveis à nossa capacidade de compreender. No corpo ela aparece como incômodo e mal-estar. No nível do sentimento ela é o nome próprio do horror de ser quem se é, de não poder ser outra pessoa. Até parece ser a dor o que nos resgata do absurdo da vida e nos responde sobre quem somos.
Experimentada como algo íntimo, cada indivíduo em nossa cultura negligencia o que a dor possa significar para o outro. Imaginamos, pela força que a caracteriza como experiência pessoal, que ela é apenas nossa e não do outro. “Eu tenho a minha dor” diz a música enquanto o outro parece não ter nenhuma. É porque sentimos dor que cremos em nossa unidade. A dor, já foi o nome do “eu” no romantismo, corrente de pensamento e estilo de vida que desde o século XIX e pelo século XX afora criou seitas e adeptos nas artes, na literatura, mas também na vida. Novamente a dor retorna em amálgama com o eu à cultura definindo o eixo da depressão que, se para muitos é patologia e medicável, não podemos esquecer que é, acima de tudo, desajuste existencial. A este desacordo entre o “eu” e o mundo, a esta “dor de viver” marcadamente romântica, Schopenhauer, o filósofo que melhor entendeu o sofrimento como um aspecto inalienável da vida, erigiu sua visão de mundo. Um resumo de suas idéias define que “sofro porque desejo”, mas sofrer e desejar são dois reflexos da condição própria da vida.
Dor de viver
Entre nós a metáfora da dor de viver se faz corpo. Eu que sou um corpo que vive e experimenta a vida, já não sou mais “um eu” que pensa ou sente, mas alguém que sofre. Eis o que sobra do sujeito moderno e do pós-moderno, que se estilhaçou, se perdeu de vista e, a cada dia com mais veemência emite o conhecido juízo acerca de seu lugar no mundo: estou deprimido. Poderia traduzir sua frase pelo “não desejo nada”. Neste caso, não estaria a dizer que “desejo não desejar”, mas que cessou o desejo. O paradoxo que surge é que não desejar nada parece ser a solução para o sofrimento que vem do desejo, quem não desejasse estaria a salvo. Mas não desejar nada é que se mostra como sendo, na verdade, o sofrimento maior. Quem deprime sabe disso. Mas de onde tirar forças para reconstruir o desejo? A vontade sem sentido que nos liga à vida e nos faz dar sentido à vida? Muitas vezes a dor de viver apenas mascara a culpa que pomos no outro ao qual queremos responsabilizar por nosso próprio fracasso diante do mistério da vida. Por isso, a depressão é, muitas vezes, a máscara de um rosto chamado covardia.
O Espetáculo da dor
Há um verdadeiro contentamento com a dor em nossa cultura. Tal gosto pelo sofrimento é, todavia, escandalização da dor e, paradoxalmente, sua banalização. De tanto ser vivida se tornou banal. A dor é um elemento de uma democracia perversa, parece ser só o que realmente nos esmeramos por compartilhar. As imagens da morte de indivíduos ou grupos, das catástrofes históricas ou da violência em escala cotidiana alegram os olhos de quem aprendeu a viver no mundo do espetáculo, o grande território que na sociedade atual, mede a vida, os corpos, os desejos, com imagens prévias do que devemos ser. O que chamamos espetáculo é ele mesmo um olho que nos vê e forja o nosso próprio modo de olhar. Que futuro há para uma cultura que vive o voyerismo da catástrofe, que goza com o sofrimento alheio pensando estar a salvo dele?
Há solidariedade que possa nos salvar diante do apelo à morte do outro, ao ódio escancarado, a que nos convidam todos os dias as formas de vida – descaso e violência - que vivemos?
A compaixão
O que há de comum entre a nossa dor e a dor dos outros? O que poderia romper o ciclo perverso de gozo e satisfação com o espetáculo da dor pessoal – na depressão - e alheia – na catástrofe assistida? Schopenhauer falou no século XIX sobre a compaixão para basear a ética. Seus críticos logo acordaram dizendo que a justiça e não a compaixão seria um melhor fundamento da ética. A justiça entendida como medida, como regramento, como o que sustenta a lei é realmente algo que pode manter a sociedade em ordem, mas a idéia da compaixão guarda um aspecto que não deve ser esquecido. A compaixão é a capacidade de perceber o sofrimento alheio e saber que ele não é bom. O termo, do latim, compassio, significa mais do que sofrimento comum: é o sentir a dor do outro como se fosse a sua. Uma sociedade que aprendesse que todos estamos mergulhados no sofrimento teria chance de verificar que previamente já há um elo que nos une e que nossa tarefa é ultrapassar sua força de destruição.