Eu tendia a gostar dos artistas insubmissos a programas
que deveriam servir a alguma “ditadura do proletariado”.
Paulinha
Lavigne, que foi minha mulher e é minha empresária (portanto tem de
me conhecer um bocado), riu muito ao me ler aqui contando que quase
colaborei com a luta armada. Mesmo Dedé, que era minha mulher no
tempo em que essas coisas se deram (e que é minha amiga
queridíssima), poderá ter se surpreendido: não me lembro de ter
dito a ela sobre o esboço de combinação que fiz com Lurdinha de
dar apoio logístico à guerrilha. Ambas devem estranhar que um
banana de pijama como eu, que, como disse o brilhante Lobão numa
pocket-palestra, toca violão como quem está tomando um cafezinho
(embora eu não tome cafezinho), pudesse estar ligado, ainda que
remotamente, a atos de violenta bravura.
Lurdinha
era minha colega de sala na faculdade de Filosofia da Universidade
Federal da Bahia. A turma era muito pequena. Os professores não
despertavam entusiasmo. O interesse em ir à faculdade se centrava
nos encontros com Wladimir Carvalho e Fernando Kraichete e nas
conversas com Rose Foly no Diretório Acadêmico. Lurdinha, no
entanto, com sua genuína vocação para a disciplina, assistia às
aulas e executava as tarefas curriculares com pontualidade. Várias
vezes ela foi me buscar em casa, fazendo arrancarem-me da cama às
pressas, para que eu não perdesse uma prova. Ela era comunista e
olhava com benevolência meu jeito boêmio.
Wladimir
também era comunista. Todos os meus amigos na faculdade — e fora
dela — eram de esquerda. Nenhum iria ao Cine Roma assistir a um
show de rock de Raulzito e os Panteras. Íamos ao clube de cinema, ao
MAM, ao Teatro dos Novos, aos concertos da Reitoria, ouvíamos João
Gilberto e Thelonious Monk. Rock era lixo e anátema. Carlos Nelson
Coutinho era nosso contemporâneo na faculdade e já escrevia artigos
sérios: era o lado teórico do movimento que crescia no período
pós-Jânio e pré-ditadura . Quando surgia uma discussão sobre se
Luís Carlos Maciel escrever um livro sobre Kafka e Beckett
representava alienação, eu sempre me posicionava do lado dos
malucos: embora só tivesse lido “A metamorfose” e os contos “Na
colônia penal” e “O faquir” (estes, na revista “Senhor”) —
e nada de Beckett — eu tendia a gostar dos artistas insubmissos a
programas que deveriam servir a alguma “ditadura do proletariado”.
Apesar da minha teimosia em não entrar em grupo nenhum, eu era
tratado com simpatia. O Centro Popular de Cultura da UNE local me
pediu que escrevesse um samba para um bloco de carnaval engajado. Fiz
“Samba em paz” — que veio a ser gravado, anos depois, por Elis.
O que
mais impressionava em Lurdinha era sua sobriedade. Ela não exibia
retoricamente a força de suas convicções: seu despojamento
pessoal, sua lealdade inabalável, sua decisão de não perder tempo
com discussões decorativas é que mostravam a firmeza de sua
orientação política.
Quando
nos jogamos no tropicalismo, Lurdinha tinha se casado com o pintor
Humberto Vellame e se mudado para São Paulo. Entre móveis de
plástico transparente e manequins de fibra de vidro, tínhamos, Dedé
e eu, em nossa sala, um quadro de Vellame. O casal nos visitava de
vez em quando. O tropicalismo tinha uma fome estética de violência
que se traduzia em imagens fortes nas letras, sons elétricos e
distorcidos nas bases, aproximação com a vanguarda radical da
música clássica, contraste gritante com a bossa nova. Isso
correspondia a uma impaciência com a inatividade dos comunistas sob
ordens de Moscou e a uma identificação com a nascente dissidência
liderada por Marighella. Faz pouco Juca Ferreira me alertou para o
fato de que não toda a esquerda era hostil ao tropicalismo: dentre a
turma da Lubelu (Liberdade e Luta) havia quem gostasse do nosso
estilo. Lurdinha — que nunca fez coro às reações antipáticas ao
nosso trabalho por parte da esquerda — sentia a mesma impaciência
que eu. Só que ela nunca fora nem boêmia nem retórica: seu
sentimento tinha de se expressar em ação. Quando ela me pediu um
eventual apoio logístico, acedi de imediato.
Em
"Verdade Tropical" digo que se a nossa revolução de
esquerda tivesse vencido talvez daí saísse apenas mais um gigante
com câimbras. Mas Marighella foi morto numa rua de São Paulo antes
que isso se tornasse ao menos provável. E pela mão de Sérgio
Fleury, o truculento policial que, em entrevista à
revista“Realidade”, nos anos 70, disse da “Baixinha” que
estivera sob tortura: “Maria de Lourdes do Rego Mello: Está aí
uma das moças mais corajosas que vi na vida. De uma lealdade e
segurança impressionantes. Nunca se deixou trair nos
interrogatórios, nunca arrancamos dela uma palavra que levasse ao
‘Velho’ (Joaquim Câmara Ferreira, o ‘Toledo’). Foi seguida
durante 60 dias, filmada, fotografada, até que foi presa. Essa moça
recusou ir para o Chile, na troca com um embaixador. Quando soube
disso, eu a chamei até minha sala. Disse: ‘Olha aqui, Baixinha,
você mentiu para mim o tempo todo. De tudo quanto disse, 99% era
mentira. Mas gostei de sua atitude. Aceito as suas mentiras. Agora
deixo você em paz.’”
Desde
que fui preso e exilado, eu não tinha notícias de Lurdinha. Temia
que ela não estivesse viva. Foi o blog “Obra em progresso”, da
feitura do Zii e Zie, quem a trouxe de volta. Um dos comentaristas,
Julio, tinha o sobrenome Vellame. Perguntei se ele era parente de
Humberto. Ele respondeu: “Sou filho de Lurdinha, Caetano.” Assim,
a internet de Hermano Vianna me reaproximou da Maria Quitéria da
guerrilha urbana.