A memória nos revela, como filme, pedaços esquecidos de nossa vida. Vejo-me de calças curtas em Diamantina, saindo de um parque de diversões e o som da praça tocando uma canção de Luiz Vieira, Menino de Braçanã: “É tarde, eu já vou indo, preciso ir embora, té manhã; mamãe, quando eu saí, disse meu filho não demora em Braçanã”. Essa é uma característica da música, linguagem universal que é trilha sonora da existência de quase todo mundo. Mas existe gente, como o poeta João Cabral de Melo, que dizia detestar o que a tantos agrada.
Como não recordar a tristeza que senti ao pegar, junto com minha mãe e irmãos, o ônibus que nos traria definitivamente para Belo Horizonte? Ao longo das quase 12 horas de viagem por estrada de terra, vim cantando coisas que ouvia na Rádio Nacional. Especialmente uma ocupou o meu tempo, Recuerdos de Ypacaray: “una noche tíbia nos conocimos junto al lago azul de Ypacaray”. Menino, eu chorava, mentalmente, a certeza de que estava perdendo algo valioso, aquela vida folgada de brincadeiras e amizades, em troca de outro ambiente que, por desconhecido, parecia-me assustador.
A realidade, porém, foi muito melhor do que eu esperava e logo já tinha novos amigos, novos jogos e outras canções. Encontrei aqui, nessa cidade, um belo horizonte. Correndo para cima e para baixo, nas ladeiras, atrás de bola, suando em busca de gols e vitórias nas peladas diárias, eu escutava o som que vinha das casas. Dorival Caymmi, violão e voz entoando sua saudade da Bahia.
Na trilha sonora pessoal nem sempre importa a qualidade do que ouvimos. Mais importante é o acontecimento, o fato, a situação que vivemos no momento em que a canção surge no ar. Não posso, por exemplo, ouvir Call me sem me lembrar de minha namorada e mulher. Era o que tocava no tempo de nossos primeiros encontros.
E assim, de música e com música vou vivendo. Se ela é vital para mim, sei que é indispensável para a maioria das pessoas. E fico chateado quando me deparo com grandes organizações, órgãos de comunicação que têm na música um elemento essencial para que produzam suas novelas, filmes e uma infinidade de programas de entretenimento, empresas que tiram daí seus lucros enormes e merecidos – não consigo entender que seja civilizado o fato de elas não pagarem o que lhes é cobrado por utilizar o que não lhes pertence. Se não querem pagar, que não usem a criação, o talento e as vozes de compositores, cantores e músicos. Será que, sem música, teriam o público de hoje?