Fui há pouco a Portugal e à Espanha.
Não existe comparação com a vida que forçou meus avós a emigrar.
Nasci
no Brás durante a Segunda Guerra Mundial. Não havia outro bairro
que encarnasse a quintessência da vida paulistana daquele tempo:
imigrantes italianos, portugueses e espanhóis, operários e casas de
cômodos.
As
ruas eram de paralelepípedos, cinzentas como os muros das fábricas.
Para achar uma árvore era preciso andar até a igreja de Santo
Antônio, em que meus pais e meus tios casaram e batizaram seus
filhos.
Meu
avô paterno emigrou sozinho para o Brasil com a sabedoria dos 12
anos de idade. Nos ombros, a responsabilidade de enviar dinheiro à
mãe e aos irmãos mais novos, que haviam acabado de perder o pai na
Galícia, norte da Espanha. Em São Paulo, casou com uma conterrânea
e tiveram três filhos. Homem à antiga, proibiu minha avó de falar
espanhol em casa, com medo de que os filhos um dia quisessem mudar
para o país ibérico.
Meus
avós maternos chegaram jovens e nunca mais retornaram a Portugal.
Ele, baixo e atarracado, tinha uma escrivaninha com tampo de correr e
uma caligrafia bordada que lhe havia garantido o posto de
telegrafista no glorioso Corpo de Bombeiros. Ela, mulher de presença
forte, andava sempre de preto. Todo fim de tarde, entretida com o
bordado, ouvia as poesias de Bocage e os romances de Eça de Queiroz
que o marido lia em voz alta.
Minha
infância foi marcada pelo futebol na calçada da fábrica em frente
de casa, pelos operários que saíam cedo com a marmita, pelas mães
que berravam o nome dos filhos na hora das refeições e pelas brigas
das mulheres nos cortiços aos domingos, ocasião em que se tornava
mais acirrada a disputa pela posse do tanque, do varal e do banheiro
coletivo.
Por
descender de imigrantes que romperam laços com a península Ibérica,
jamais tive nenhum compromisso com seus países de origem. Com
exceção da afinidade cultural transmitida pelos costumes
familiares, nunca me passou pela cabeça que, além de brasileiro, eu
pudesse estar associado a outra nacionalidade.
Muitos
anos atrás, fui ver "Bodas de Sangue", filme do espanhol
Carlos Saura. Fiquei espantado diante daqueles bailarinos esguios com
o mesmo tipo de calvície que eu e com a semelhança física entre
eles e as pessoas que frequentavam a casa dos meus avós.
Evidentemente, meus genes chegaram até mim graças à competição e
à seleção natural que deu origem aos povos ibéricos.
Consciente
dessa aventura evolutiva, estive há pouco tempo em Portugal e no
norte da Espanha. Não existe comparação entre a vida nesses
lugares e aquela que forçou meus avós a emigrar. A adesão à
Comunidade Europeia revitalizou a economia, tornou as cidades seguras
e bem cuidadas, criou empregos e mecanismos sociais para amparar os
mais frágeis.
Se no
início do século passado esses países dispusessem de tais recursos
para proteger seus agricultores, meus avós teriam permanecido em
suas aldeias.
Nessas
circunstâncias, caro leitor, quem sairia prejudicado?
Este
que vos escreve. Primeiro, porque meus pais teriam vivido a
quilômetros de distância um do outro, circunstância pouco
favorável à minha concepção. Depois, porque, ainda que tal
encontro porventura ocorresse, eu não teria experimentado as
alegrias e agruras de ser brasileiro.
Você
argumentará que eu não viveria num país com tanta desigualdade,
corrupção institucionalizada, impunidade, falta de educação e
violência urbana.
É
verdade, nos países ricos esses problemas são incomparavelmente
menos graves, mas há outro lado: eles estão empenhados em manter a
qualquer preço o bem-estar já conquistado. O futuro deles é lutar
pela preservação do passado, enquanto o nosso está em construção.
Entre
eles, as relações humanas são mais cerimoniosas, e o cotidiano,
repetitivo e previsível. Não lhes sobra espaço para o inesperado,
o encontro com a felicidade exige planejamento prévio: o e-mail para
visitar um irmão, as férias na praia em 2014, o ingresso para um
espetáculo que acontecerá dez meses mais tarde. A vida lá não
pulsa como aqui.
Organização,
serviços públicos de qualidade, leis rigorosas e aposentadorias
decentes são privilégios que asseguram conforto e segurança, bens
invejados pelos que não têm acesso a eles, mas que não parecem
trazer alegria aos povos que deles desfrutam.