Clarice Lispector diz que a palavra mais importante da
língua portuguesa tem um som de letra: é. E ela tem razão. Não é preciso muito
mais para definir-se o momento. É justo. Seco. Bom o bastante para o aqui e
agora, sem os temores do será, ou a nostalgia do era que, com o passar dos
anos, vai-se fortalecendo e embaralhando a noção de tempo. As rugas que vamos
descobrindo na superfície são as pontas de profundos icebergs e, ao tentar
mapeá-los, frequentemente, trocamos o é por sua forma no pretérito. Na
maturidade, aquilo que era vai ganhando cada vez mais espaço, até que um dia
cruzamos a tênue linha que delimita o tempo e avançamos sem medo na direção do
passado.
As tempestades da alma, tão comuns na meia-idade, na
verdade, são vislumbres do futuro e a bonança, que se segue a elas, sopra o
vento das saudades sazonais, que chegam inexoráveis, instalam-se sem aviso
prévio, tomam conta de tudo e não têm data marcada para a partida.
Nesses últimos dias, por exemplo, de baixas temperaturas em
São Paulo, muitos ensaios e muita correria, o vento trouxe meu pai de volta.
Talvez porque a última vez em que tenhamos ficado juntos foi nesse apartamento.
Ele dormiu comigo e lembro que conversamos até às tantas; ele me contou
novamente o meu nascimento, uma história que ele adorava repetir.
As crianças de olhos azuis nascem com os olhos muito claros
e, por um momento, papai acreditou que eu fosse cego. Tio Olavo, que fazia
todos os partos da família, dissipou-lhe os medos, mas a história, que ele me
contou mais uma vez, na última vez em que estivemos juntos, valeu-me o apelido
familiar de olho branco. Curiosamente, aquele homem que era o arquétipo do
carioca da gema, que adorava andar de peito nu pela praia da infância, ficou
para sempre guardado neste meu apartamento de concreto, que hoje resolveu
engolir a noite gelada e sem estrelas.
A cama e o colchão ainda são os mesmos. Eu tento
adivinhar-lhe a forma, ao meu lado, naquela noite de alguns anos atrás. Ele
ficou viúvo muito cedo e nunca conseguiu superar a perda do amor da sua vida.
Foram essas as suas palavras, no corredor do hospital, quando mamãe avançou
decidida para o passado. Nunca mais pensou nas coisas do amor, mas, como ainda
era jovem, nós fizemos de tudo para que ele se interessasse por alguém.
Finalmente, ele arranjou uma namorada e manteve com ela um relacionamento por alguns
anos. Um dia, ele almoçava comigo e falávamos dela, quando eu perguntei, assim
como quem não quer nada, se ele estava feliz, se gostava daquilo que estava
vivendo.
- Você gosta dela, pai? - eu perguntei, atrás da intimidade
que, hoje eu sei, tanto eu quanto ele buscamos desesperadamente um no outro.
Papai me olhou, surpreso com a objetividade da minha
pergunta, e respondeu sem alterar o tom.
- Ela me dá lanche - ele disse, e deu o assunto por
encerrado.
A resposta lacônica virou piada entre os irmãos, mas hoje,
escrevendo nessa noite cada vez mais fria, eu entendo a justeza daquela frase.
Ela me dá lanche é apenas mais uma tradução do é de Clarice que abriu a
crônica. Simples e definitivo. Como a saudade é.
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A Casa Encantada
Contos do Leblon
Edmir Saint-Clair
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