A cena era singela. Uma jovem de vinte e poucos anos no dia do seu casamento. O rosto muito bem maquiado, o sorriso doce, os cabelos repuxados no alto da cabeça por uma tiara, mas caindo em cachos perfeitos (não havia um só fio solto) sobre os ombros.
O vestido acetinado, rosa-chá, era tomara-que-caia, todo de nervuras, uma delicadeza. Sendo assim decotado, exibia por inteiro o colo, os ombros nus, o pescoço da noiva. E era ali, mais exatamente no ombro e no pescoço, que estavam as duas gigantescas tatuagens. Uma delas, a do ombro, era uma rosa enorme, preta e vermelha, que se espalhava pelo começo do braço. Já a do pescoço era um desenho tribal, talvez (o que será um desenho tribal?). Ou talvez não.
Pensando bem, acho que era uma aranha.
Confesso que, num primeiro instante, a fotografia me chocou.
Alguma coisa estava fora de lugar. Seria preciso escolher entre a doçura do vestido de noiva e a imagem incisiva, quase agressiva, daquelas tatuagens. Um e outro eram, como diziam os intelectuais de antigamente, uma “ruptura na cadeia do significante”. Ou do significado.
Mas logo refleti melhor: por que as duas coisas precisavam ser excludentes?
E nesse instante me lembrei da pergunta que me fora feita: quem é a garota de Ipanema hoje?
Sendo a noiva em questão uma jovem carioca e morando por ali mesmo, em Ipanema, concluí que, de repente, ela – aquela noiva pós-moderna, misturando na mesma imagem elementos tão díspares – poderia muito bem servir de exemplo.
Afinal, o conceito de “garota de Ipanema” está associado à idéia de liberdade, e havia qualquer coisa de libertário naquele gesto de se casar à moda antiga e, ao mesmo tempo, exibir as tatuagens (ela poderia ter usado um vestido fechado).
Por que associamos “garota de Ipanema” com liberdade? Em seu livro Ela é carioca – Uma enciclopédia de Ipanema, Ruy Castro escreve que a música feita por Tom e Vinicius era “uma homenagem à já longa tradição feminina de Ipanema – a todas as garotas que, desde os anos 30, haviam lutado pela independência, nas praias, nos bares, nas ruas, e conquistado o direito de trabalhar, pensar, namorar e fazer as besteiras que quisessem”. É isso mesmo.
A idéia de uma garota dourada a caminho do mar – e dona de seu nariz – vinha de longe, mas só se consolidou ao longo dos anos 60 e 70, período em que se deu a chamada revolução da contracultura. O auge da liberdade. Mas seria mesmo?
Pois, hoje, a garota de Ipanema talvez seja mais livre ainda, mais livre do que nunca. Mais livre do que as garotas de Ipanema daquelas décadas que entraram para a história como as da conquista e do paroxismo da liberdade. E a razão disso é que a jovem de hoje é livre também para ser “careta” à vontade, se quiser. Isso faz toda a diferença do mundo.
Voltemos à nossa noiva. Há 30 anos, ninguém tinha o direito de ser “careta”. Uma menina que acalentasse o secreto desejo de se casar de noiva era capaz de morrer de culpa, por se deixar envolver por esses “anseios pequeno-burgueses”. Tinha vergonha de confessar isso às amigas. E não era apenas casar na igreja que era feio: em alguns círculos, principalmente os dos intelectuais de esquerda, também era feio querer ser bonita, usar roupas de gostosa (“mulher-objeto”), salto alto, maquiagem. Isso agora acabou.
Conquistado o direito de dormir com o namorado em casa (ah, como era complicado antes!) – e apesar dos percalços provocados pelo medo da Aids – as garotas de hoje podem escolher à vontade entre usar salto alto ou chinelo, bata indiana ou saia godê, pintar ou não as unhas, usar ou não batom. Podem “ficar” ou namorar a sério, podem ficar noivas ou simplesmente ir morar com o namorado. Ninguém está ligando. (Sei de um rapaz que é baterista de uma banda de heavy metal e está noivo de aliança. E outro dia vi um casal de punks empurrando um carrinho de bebê pelo calçadão – eles, cobertos de piercings e de preto da cabeça aos pés, e a garotinha toda de cor-de-rosa.)
Enfim, as jovens de hoje podem resolver apenas coabitar ou podem se casar de noiva, na igreja, com festa e padrinhos, tatuadas ou não – sem precisar se envergonhar. Isto é liberdade, não? Sem dúvida.
Só tem um pequeno senão. (Sempre tem. O ser humano gosta de complicar o que é simples.) É que as jovens de agora são livres demais. Foram criadas por pais que só souberam dizer “sim”.
Esses pais, os ex-revolucionários, ex-hippies e ex-loucos que hoje estão com 50, 60 anos, não acreditavam em impor limites. E até a liberdade, quando é total, enjoa. Com isso, as novas garotas, de Ipanema ou de outras praias, tiveram de buscar alguma coisa que fosse proibido. Daí criaram um padrão de beleza que contraria a natureza, formado por mulheres esquálidas, que parecem saídas de um campo de concentração.
Pronto: estava inventado o “não” dessa geração. Para a garota de Ipanema de hoje, só é proibido comer.