-->Minha
sogra, Irina Popov, é ucraniana. Os Popov se deixaram capturar pelos
nazistas porque consideraram Hitler uma opção melhor do que Stalin.
Bons tempos. Depois de amargar dez anos entre campos de trabalho e de
refugiados, uma parte do grupo veio parar na Guanabara, a outra
permaneceu na antiga União Soviética.
Evguéniy
é um Popov de Kriviy Rig, na Ucrânia. Engenheiro aposentado, tem
uma namorada, Lena, com quem divide uma datcha, um pedaço de terra,
no quintal da casa dela. Lá, Génia planta as batatas que ambos
comem no inverno. Em 1986, quando em visita aos parentes daqui,
passeou pelos corredores dos supermercados exclamando ohs! e ahs! de
fascinação.
Não
entendia o porquê das diferentes marcas. Leite, para Génia, era
leite. Carne era carne. Que mistério separava um Glória de um
Nestlé, uma Becel de uma Doriana?
A
sobrinha, Iratchka, enfrentou o tórrido verão do último dezembro
carioca. Ginecologista em uma clínica de ultrassom em Lviv, no lado
ocidental da Ucrânia, assistiu à queima de fogos em Copacabana e
visitou Paraty.
Na
despedida, refletindo sobre o que levaria dos trópicos, comentou
saudosa: “Jamais pensei que um dia eu fosse experimentar o conforto
de viver cercada de escravos!”.
Foi
embora, deixando para trás a vergonha e a consciência da
desigualdade social. A Revolução de 1917 socializou a pobreza, mas
acabou com a servidão.
As
relações entre patrões e empregados no Brasil seguem herdeiras de
Casa Grande & Senzala, com senhor e servo dividindo o mesmo
espaço comum. Nesse melê, as leis trabalhistas tendem a se tornar
irrelevantes, as cargas horárias difíceis de ser mensuradas, bem
como o direito de ir e vir. O que custa fazer um suco? Pegar uma
roupa no chão? Como as mães faziam, antes das feministas e da
competição do mercado.
A
chegada dos filhos e o aumento da carga de trabalho transformaram a
minha economia pessoal em uma microempresa privada. Hoje, sustento
uma máquina que me permite representar e escrever sem que a
retaguarda desmorone. Por entender que o pessoal de casa faz parte do
meu processo produtivo, tentei aplicar nos contratos domésticos as
regras salariais do setor empresarial. Sempre paguei FGTS,
seguro-saúde, vale-transporte e hora extra.
Mas a
pressão da vida adulta já me fez cometer abusos. Pode-se alegar que
o Brasil só será um país desenvolvido no dia em que cada um lavar
a sua louça, dobrar os lençóis e contar com uma ajuda bissexta na
faxina.
Quando
o transporte, a educação e a segurança pública, as creches e as
lavanderias de esquina se tornarem uma realidade corriqueira. Por
enquanto, o serviço doméstico ainda emprega um naco relevante da
mão de obra sem formação superior do país.
O
esforço de regular e definir os direitos desses prestadores de
serviço é mais que bem-vindo. Sou abolicionista, pelo menos gosto
de me ver assim, mas necessito da ajuda de terceiros para tocar o
barco.
Uma
legislação que profissionalize o legado maldito da escravidão já
alivia a culpa da despedida da prima ucraniana. Mas não resolve a
injustiça. Basta rever o discurso de Marlon Brando no clássico
Queimada.