Um dia, peguei uma revista americana para folhear, mas não consegui abri-la. Meus olhos se prenderam à fotografia da capa e ali ficaram, hipnotizados. Era uma foto em close de um lobo ou cão de pêlo escuro, com os dentes à mostra e os olhos arregalados. Embora o título ao pé da foto dissesse Anatomia do medo, para mim aquela imagem não era a tradução do medo – mas sim de outro sentimento, poderoso e destruidor, que num primeiro instante não pude precisar.
Continuei olhando: os olhos cor de fogo, o pêlo reluzente, os caninos como marfim velho, de pontas finíssimas; a gengiva escura, a língua vermelha, banhada em saliva. A imagem era de um realismo impressionante, o animal parecia a ponto de saltar do papel. Pensei, num delírio, que se ele o fizesse, eu não me deixaria morrer de forma passiva, mas o agarraria pelo pescoço e apertaria com toda a força. Seria uma luta encarniçada. E, nesse instante, veio a compreensão do sentimento que me evocava a fotografia: não era medo, era ódio.
A constatação me deixou inquieta. Sempre tive dificuldade de lidar com a raiva. E, nessa época, a raiva era um sentimento que fermentava dentro de mim, à minha revelia. Havia uma razão para eu me sentir assim: minha mãe começava a mostrar os primeiros sintomas do Mal de Alzheimer. Como qualquer doença que afeta as faculdades mentais, o Alzheimer costuma provocar misericórdia – mas também suscita sentimentos menos nobres, como a revolta, a raiva e, em conseqüência, a culpa. Era o que acontecia comigo.
Mamãe, que sempre fora uma mulher forte, independente e decidida, tornara-se um ser frágil, súplice, uma mulher carente, emocionalmente desequilibrada. E eu vinha tendo enorme dificuldade de conviver com a pessoa desconhecida que surgia de dentro dela. Baixei a cabeça e tornei a observar os olhos cor de fogo do lobo preto, na capa da revista. Havia um animal igual àquele dentro de mim.
Quando se manifesta, o Mal de Alzheimer traz consigo vários males, que se infiltram na vida do doente e de todos que convivem com ele. A raiva é um desses males. Os parentes não conseguem compreender o que está acontecendo, negam a doença – ou simplesmente a desconhecem – e com isso acabam sendo tomados por um sentimento de revolta.
Hoje, depois de conviver com a doença de minha mãe por mais de dez anos, eu me arriscaria a dizer que se houvesse um maior esclarecimento sobre o problema, os casos de violência contra os idosos diminuiriam. Ao anunciar, em setembro último, a Campanha Nacional de Conscientização sobre o Mal de Alzheimer, a Academia Brasileira de Neurologia (ABN) divulgou uma previsão assustadora: em dez anos, vai quase dobrar o número de pessoas com a doença no Brasil.
Hoje, há cerca de 16 milhões de brasileiros com mais de 80 anos, faixa etária em que a percentagem de casos de Alzheimer pode chegar a quase 40 por cento. Em 2017, serão 24 milhões de idosos acima dessa faixa etária. Se, entre esses, houver dez milhões com demência senil, e se contarmos as pessoas que estão em volta deles – filhos, maridos e mulheres, irmãos, acompanhantes – estamos falando de um universo de talvez 40 milhões de pessoas.
São projeções, mas já dá para pressentir esses números: é raro falarmos no assunto Alzheimer sem ouvir o interlocutor dizer que tem um caso na família ou que sabe de alguém que tem. O Mal parece estar em toda parte. E continuamos sabendo tão pouco sobre ele.
Quem nunca conviveu com um caso de demência senil pensa que o Mal de Alzheimer é simplesmente a perda da memória. Mas não é. É uma doença cheia de faces, um mal progressivo e desestabilizador, que nos faz perder as referências, porque um de seus primeiros sintomas é a modificação da personalidade. A princípio de forma sutil, essa mudança vai aumentando e contaminando as relações. Às vezes, o doente se transforma no avesso de si mesmo: torna-se manhoso, quando era corajoso; brigão, quando era pacífico; desafiador, quando era cordato. Além disso, todas as dores mal trabalhadas, todas as mágoas acumuladas ao longo de anos – coisas naturais nas convivências familiares – começam a aflorar. Os pequenos nós, os pontos doloridos, se fazem sentir com mais agudeza, e isso torna as relações entre o doente e seus parentes quase insuportáveis.
Quando minha mãe apresentou os primeiros sintomas, eu não tinha a menor idéia do que estava acontecendo. Achava que envelhecer era assim. Demorei muito a procurar ajuda médica especializada e acredito que isso tornou mais difícil minha relação com ela. Por outro lado, não creio que a demora em consultar um especialista tenha sido determinante para a evolução da doença: os remédios que existem hoje são, em alguns casos, capazes de retardar um pouco o processo, mas não há cura. Nem prevenção.
Na verdade, ninguém sabe direito o que causa o Mal de Alzheimer e as demências senis correlatas. No caso de minha mãe, os remédios experimentados – alguns caríssimos, importados – deram um resultado mínimo e, mesmo assim, acompanhado de efeitos colaterais (um deles provocou rigidez muscular em mamãe, que praticamente parou de andar, recuperando os movimentos assim que suspendeu o medicamento).
O neurologista que a atendeu disse que ela não sofria apenas de Alzheimer, mas de uma combinação de doenças senis, incluindo a demência com corpos de Lewy e a demência fronto-temporal, ou doença de Pick. Na época, ouvi aquilo e não entendi nada. Depois, estudando o assunto na internet, fiquei sabendo que os corpos de Lewy são estruturas cheias de proteína, que matam ou modificam os neurônios; e que a doença de Pick afeta os lobos frontal e temporal, atingindo mais o comportamento do que a memória. Mas, nos dois casos, ninguém sabe por que isso acontece. E não há cura.
O mesmo se dá com o Mal de Alzheimer: quando, em 1906, o neuropatologista alemão Alois Alzheimer pesquisou o cérebro de uma paciente sua, morta aos 55 anos com demência precoce, e descobriu emaranhados fibrosos dentro de seus neurônios, ele estava inscrevendo seu nome na história da medicina. Mas o que até hoje ninguém sabe é por que esses emaranhados neurofibrilares e placas neuríticas – que, a grosso modo, apagam os neurônios – aparecem.
Há um inegável fator genético, mas a doença tem sido também associada a fatores externos, como impulsos elétricos, stress e alimentação (a incidência de alumínio encontrada em cérebros de portadores da doença é altíssima), entre outros. Uma pesquisa feita há alguns anos mostrou que entre os portadores de demências senis há uma grande percentagem de pessoas solitárias – ou melhor, que se dizem solitárias, mesmo não sendo. Uma amiga minha garante que o Mal de Alzheimer é mais comum entre pessoas incapazes de superar as próprias perdas, pessoas que guardam mágoas e alimentam o sofrimento. Será?
Devemos deixar aos cientistas a busca dessas respostas. Mas, enquanto isso, temos de aprender a conviver com o problema da melhor forma possível. E, se os remédios ainda não são tão eficazes assim, entender o que está acontecendo é muito importante. Faz toda a diferença do mundo.
Em minha mãe, a doença teve inúmeras faces e fases, começando com os lapsos, os esquecimentos, as confusões (estes, sim, naturais da idade) e logo desembocando na gradual, porem inexorável, transformação da personalidade. Junto com esta, começaram os sintomas mais graves: depressão, manias, paranóia persecutória e por fim alucinações. De repente, eu tinha em casa uma psicótica, capaz de tudo – até mesmo de violência.
Em meio a esse turbilhão de horrores, nem sempre é fácil ter compaixão. Em geral, o que eu mais sentia era raiva. Era o lobo selvagem dentro de mim, mostrando seus dentes. Não me envergonho de dizer isso. Houve momentos, durante o processo de esfacelamento da mente de minha mãe, em que senti que me degradava também, que me desfazia, que ameaçava resvalar perigosamente para o outro lado – o lado da insanidade. Acho que essa foi uma das razões que me levaram a escrever um livro sobre o Mal de Alzheimer.
Quando me sentei no computador, não sabia ao certo o que faria. Deixei que meus dez dedos, pousados sobre o teclado, decidissem tudo, caminhassem sozinhos. Escrevi durante semanas, de forma febril. E assim se fez O lugar escuro – Uma história de senilidade e loucura. É um relato da minha convivência com a doença, e também uma viagem ao fundo da mente de minha mãe. Uma catarse que me ajudou a entender e, principalmente, a aceitar muitas coisas.
Acho que esta é a palavra-chave: aceitação. Não é fácil ver alguém com quem se conviveu por toda a vida se transformar em outra pessoa. Meu marido, muito perspicaz, disse certa vez uma frase que me chocou muito, mas que tive de admitir ser rigorosamente verdadeira: “Sua mãe não existe mais. O que existe é uma entidade, que tomou o lugar dela. Não sei que entidade é essa, nem o que se passa em sua mente. Só sei que ela não é mais sua mãe”. Aceitar isso foi algo que também me ajudou. Mas admito que não foi fácil. Para os filhos, esse processo de entendimento e aceitação talvez seja ainda mais difícil do que para maridos, mulheres, irmãos e outros parentes que convivam com o doente. Porque as relações entre pais e filhos são muito fortes, viscerais, e por isso mesmo quase sempre difíceis, permeadas de pontos sensíveis.
Quando me convenci de que era um caso de demência senil, a raiva e a revolta que moravam dentro de mim – aquele lobo de olhos de fogo – deu lugar à compaixão. Eu me reconciliei com minha mãe. Hoje, converso com ela, mesmo sabendo-a incapaz de compreender o que estou dizendo, e falo de mágoas, equívocos, ciúmes, sentimentos que por muitos anos tinham ficado sufocados, nela ou em mim. E ela, às vezes, em rasgos de lucidez, diz frases pertinentes, que me tocam e surpreendem. Mas o importante é que hoje consigo acariciá-la, ficar a seu lado, brincar com ela – muito mais do que antes.
No fim, o mal de Alzheimer foi para nós duas um acerto de contas. No bom sentido.
No fim, o mal de Alzheimer foi para nós duas um acerto de contas. No bom sentido.