Os
atuais momentos íntimos poderão não ser mais tão íntimos. Nada de gravador
debaixo da cama, primitivo e arriscado
Essa
estupidez inqualificável perpetrada em Boston aviva o receio de um futuro de
insegurança, desconfiança e medo para toda a Humanidade. Grande parte dela já
enfrenta isso, mas todos podemos esperar um futuro bem diferente do que os que
cresceram no século passado imaginavam. Acreditávamos possível uma vida
privada, sem partilhar com ninguém nosso comportamento pessoal, práticas,
idiossincrasias e mesmo esquisitices que não fossem da conta alheia.
Encarávamos como um pesadelo distante e evitável o mundo descrito por George
Orwell em1984, com sua omnipresente teletela sempre ligada e a vida dos governados
escrutinada em todos os detalhes.
Hoje
a tecnologia prevista por Orwell parece saída das velhas séries de Flash Gordon
e a aspiração a uma vida privada, ao menos parcialmente livre do controle do
Estado e de grandes organizações, não passa agora — e no futuro muito mais — de
uma utopia ou lembrança nostálgica. Estamos só começando, mas a tecnologia
marcha aceleradamente e as mudanças chegam sem aviso, para só as percebermos
quando se torna claro que vieram para ficar. Muitos de nós entontecemos com
essa velocidade, gostaríamos que houvesse mais tempo para assimilar as
novidades, cansamos de tanto aprender e desaprender sem cessar. Os
recalcitrantes se escondem delas, fazem tudo para ignorá-las e mesmo
hostilizá-las, mas sabemos que não adianta. Por exemplo, se um vírus hipotético
afetasse repentinamente todos os computadores de um país qualquer, inclusive o
Brasil, o caos seria absoluto. Não teríamos comunicações, água, energia
elétrica, aviões voando, bancos e comércio funcionando, hospitais, nada mesmo.
O vírus resultaria, nesse sentido, muito mais eficaz que um bombardeio pesado.
Os programas de sabotagem eletrônica são importante arma de guerra, porque não
há como escapar da malha informática.
O
atentado de Boston aumentará o empenho não só do governo americano, mas de
todos os outros, em reforçar e aprimorar mecanismos de segurança. Isso está
longe, é claro, de restringir-se a revistas em aeroportos, episódicas
varreduras em busca de explosivos, contratação de pessoal especializado e assim
por diante. O mais importante é o acompanhamento da vida de cada um, porque,
nestes tempos loucos, todos são suspeitos. Londres, por exemplo, está cada vez
mais coberta de câmeras de segurança e a circulação de um indivíduo talvez já
possa, ou em breve poderá, ser acompanhada o dia inteiro. Por onde quer que ele
passe ou aonde vá, lá estará a câmera de olho.
Penso
em filmes policiais de antigamente, com a cena da saída do suspeito em seu
carro e o detetive pegando um táxi e dando a ordem de “siga aquele carro” ao
motorista. A ordem agora é diferente, é “monitore esse celular”. A depender do
caso, o sujeito pode ter sua vida completamente espionada, desde os locais por
que circula às conversas de que participa — e isso inclui os eles e elas cujos
cônjuges desconfiem de prevaricação. Aliás, grampear telefone, celular ou não,
é coisa do passado. Vocês já devem ter lido que cada voz humana é única, é como
as impressões digitais, não há duas idênticas. Em decorrência, mesmo que um
ouvido animal não distinga entre vozes muito parecidas, há aparelhos que
distinguem e, se lhes fornecem essa assinatura vocal, ela sempre será
identificada. A novidade é que o “grampeado” não tem como fugir. Quando ele
começa a falar no telefone, seja celular, doméstico ou orelhão, em qualquer
lugar onde esteja, uma central especializada compara a voz com as assinaturas
em seu poder. Se reconhece a do freguês, grava a conversa. Fulano pode
disfarçar a voz e dizer que é Sicrano à vontade, mas o banco de dados não se
engana. E, se as chamadas forem cifradas, o governo certamente alegará razões
de Estado para exigir dos autores a chave da cifra.
Os
atuais momentos íntimos poderão não ser mais tão íntimos. Nada de gravador
debaixo da cama, primitivo e arriscado. O amanto ou amanta (eu faço que esqueço,
mas não esqueço as novas normas gramaticais da República) poderá até engolir um
minúsculo gravador de circuito integrado, com microfone configurado para
suprimir frequências sonoras inoportunas, como as de borborigmos e
assemelhados, mas de resto capaz de gravar uma bela trilha sonora do embate
amoroso, desde os jogos preliminares à hora de vestir a roupa. Também mentir
ficará bem difícil, porque os novos detectores de mentiras não mais se fiam
numa combinação complexa e enganosa de alterações cardíacas, respiratórias ou
nervosas, mas em sensores que medem mudanças inconscientes na voz e na emissão
da fala — dizem que estão ficando infalíveis.
A
tendência comum, talvez normal, é o cidadão aceitar sua perda de privacidade,
em troca da segurança individual ou da coletividade, até porque não costumam
dar-lhe escolha e o medo é uma força muito grande, mais difícil de vencer que
outras emoções. E é reacendido não somente por fatos da magnitude do que
aconteceu em Boston e suas previsíveis consequências, como pelo que a gente
encontra, por exemplo, na internet. Para citar apenas um caso, lembro os muitos
sites que mencionam impressoras 3D, as quais tornam possível que se compre um
objeto na rede e a entrega seja feita por um aplicativo que instrui a impressora
do comprador a “imprimir”, ou seja, reproduzir aquele objeto na casa do
comprador, sem necessidade de entregador. As impressoras e os programas já
estão em funcionamento, aprimorados diariamente. Não é fantástico? É, sim, pelo
menos até vocês fuçarem outros sites e descobrirem empresas desenvolvendo
programas, materiais e impressoras 3D para oferecer armas de combate. Qualquer
um, do bandido ao psicopata, poderá comprar e “imprimir” quantas quiser, sem
numeração ou registro. Dá medo disso, dá medo daquilo — e a gente fica sem
saber o que pensar.