“Lembrar é fácil para quem tem memória.
Esquecer é difícil para quem tem coração.”
(William Shakespeare)
Mnemósine é a pouco lembrada deusa grega da Memória. Curiosamente, uma de suas filhas com Zeus, a musa Clio – na verdade, deusa da história – costuma levar a fama. Mas Mnemósine – filha do imperador Cronus com a deusa Gaia (terra) – foi considerada uma das mais poderosas deusas de seu tempo. A memória nos distingue de outras criaturas no mundo animal e nos equipou com a razão e a capacidade de prever e antecipar acontecimentos. Mnemósine é citada, muitas vezes, como a primeira filósofa e detentora do poder da razão: nomeou objetos, deu aos humanos a capacidade de dialogar, memorizar, lembrar. Quando não existia a escrita e as histórias eram contadas de geração para geração, a memória exercia papel essencial.
Mnemósine preservava do perigo do esquecimento. Na cosmogonia grega, as almas bebiam do rio Lete (de “letal”, esquecimento) quando estavam prestes a reencarnar, e, por isso, esqueciam sua existência anterior. Já quem escolhia lembrar as lições aprendidas em vida, recebia a bebida de Mnemósine e seguia para os campos elisios para ter paz e tranquilidade.
Afinal de contas, como armazenar e contar a nossa própria história?
Compartimentada na mente, onde o excesso de informações nos faz esquecer mais do que lembrar? Na mente e nas lembranças nos traímos o tempo todo, trafegando num terreno pantanoso onde ficção se mistura com a realidade e acabamos não tendo mais certeza do que restou do “fluxo e refluxo dos dias”. E as coisas que guardamos? O que representam, afinal, “as coisas” na nossa história? As fotografias? As cartas? Os objetos colecionados?
Outro dia passei uma noite na casa onde cresci, na região serrana. Cheguei lá usando o velho instinto geolocalizador, já que a neblina tornou o caminho completamente branco, embotando a visão. Já em casa, protegida do frio e da garoa, decidi mergulhar fundo no passado, o que não é difícil, já que cada cantinho da casa remete a um cem número de lembranças – reais ou imaginárias, não importa muito. Fui fundo: decidi remexer em caixas de guardados no meu antigo quarto infantil, hoje usado pela minha filha. Reli cartas, revi e revivi montes de fotos e momentos.
No calor do meu passeio nostálgico, percebi que o que os guardados têm de familiar e de aconchegante, têm também de inquietante. O que parece é que sempre há “coisas” em excesso. O que fazemos com as coisas que compõem a nossa história iconográfica, os “itens históricos” colecionados ao longo da vida? Como determinar se há um “excesso”? Até que ponto jogar “coisas” fora ou dá-las representa um ato prático e simbólico – uma vez que o que importa e é de fato relevante, permanecerá sempre dentro e não fora?
Minha avó materna costumava queimar todas as cartas recebidas ao longo do ano na lareira da sala, sempre perto do Natal. Ela, que perdeu casas e “coisas” de boa parte da vida na segunda guerra, não tinha grande apego a coisas. Mas fotos, bem me lembro, tinha em profusão. Gostava delas, vivia pedindo que lhe mandássemos, que lhe déssemos para guardar. Lembro claramente do quanto as imagens lhe eram importantes.
Já minha ex-sogra era uma guardadora de “coisas” profissional. Dona Zélia guardava cada desenho que seus netos lhe dessem, qualquer bonequinho que ganhasse, colecionava corujinhas e outras miniaturas, armazenava panos de prato para poder presentear e nunca faltar, adorava brincos, botões, vidrinhos de perfume. Fotos, então, nem se fala. Suas paredes já não tinham espaço para novos quadrinhos com fotos da família, e as prateleiras transbordavam de álbuns.
Remexendo meus guardados, descobri montes de cartas recebidas e algumas cópias das que escrevi e guardei, por algum motivo. Lendo-as, protegida pela distância do tempo, recordei dramas e preocupações, estados de espírito e sentimentos que formam uma linha do tempo bem diferente daquela que temos hoje no Facebook, onde está só o que é bom e passou por um crivo cuidadoso para ser visto pelos outros. Essa nova linha do tempo virtual certamente não tem o mesmo valor. Se antes fotografar era realmente registrar a história, hoje transformou-se em um exercício de exibicionismo muitas vezes gratuito e descartável. Pode-se deletar uma linha do tempo inteira. Substituir por novas fotos e amigos mais interessantes ou desejáveis em um outro momento da vida. Manipulamos e deletamos nossa história virtual da maneira que bem entendemos, apertando alguns botões.
Em geral, a decisão do que descartar tem muito menos a ver com quem somos do que com quem deixamos de ser. Coisas deixam de fazer “sentido” em nossas vidas, estantes ou gavetas quando não nos enxergamos mais nelas. Essa é a lógica que nos impede de abarrotar nossas casas e transformar nossos espaços em verdadeiros museus. Mutantes, vamos cambiando nosso jeito de ver o mundo a cada dia, e nem sempre nos orgulhamos do que já fomos e das escolhas que fizemos. Aí deletamos.
Mas as coisas também nos servem para mantermos por perto as lembranças. Como Mnemósine, acredito que há um grande valor em manter viva a memória de quem já fomos e as lições que aprendemos. Troféus de viagem nos fazem reviver peregrinações pelo mundo, livros são parte de nós mesmos, fotos remetem a tantos e tantos momentos que compartimentalizamos na memória, displiscentemente. Cartas são verdadeiras preciosidades autobiográficas.
Artigos de jornal guardados resgatam ideias que já nos foram relevantes, uma peça de roupa pode lembrar o cheiro de alguém que já se foi ou um romance inteiro.
Não chego a nenhuma conclusão definitiva, claro. Jogo algumas coisas fora, reorganizo outras e, aconselhada ao pé do ouvido por Mnemósine, guardo a maior parte. Reconheço que não quero esquecer.
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