Fui para a Índia bastante preocupada
com os cheiros que
encontraria; pois me preocupei à toa
Tenho algumas perguntas que nunca serão respondidas.
Gostaria de saber, por exemplo, qual era o gosto da comida na Idade Média.
Posso ler mil descrições, mas nenhuma jamais corresponderá à garfada que me
esclareceria essa dúvida. Tenho certeza de que eu detestaria praticamente
qualquer prato, já que sutileza não era uma marca registrada da época. Já
participei de alguns jantares “medievais” na Europa, em que cozinheiros
criativos tentaram recriar antigas receitas, mas faltava-lhes metade dos
ingredientes e, imagino, boa parte da coragem para carregar nos temperos.
Tenho também muita curiosidade em relação ao cheiro do
mundo. Quando passeio por encantadoras cidades antigas, em que tudo parece
cenário de filme de época, nunca esqueço que, no tempo em que viveram seu auge,
as noções de higiene eram bem diferentes das nossas. As ruazinhas estreitas que
tanto me encantam eram melequentas e imundas. Bichos de todos os tipos
circulavam entre as pessoas, de bodes e vacas a ratos e insetos; ninguém tomava
banho; havia esgotos a céu aberto. Cavalos, bois e burros ocupavam as ruas,
montados ou puxando carroças, e deixavam por toda a parte o rastro da sua
presença. Queimava-se incenso nas igrejas não por motivos sagrados, mas para
dar um trato no bodum de tanta gente junta: havia quem acreditasse que a fumaça
afastava doenças.
Tive dois momentos de grande percepção
histórico-olfativa, digamos assim. O primeiro aconteceu na Turquia quando,
circulando pelo interior, fui parar numa aldeia minúscula que pouco tinha
mudado com os séculos. As casas eram construídas em dois pisos. No térreo
ficavam os armazéns e os animais; no andar superior, as pessoas. Entrei em
várias delas e, embora estivessem limpas, o aroma era — para usar um termo
diplomático — intenso. Estávamos no começo da primavera, o que significava
portas e janelas abertas e espaços arejados. Não tive imaginação suficiente
para fazer ideia de como seria no inverno.
O outro momento aconteceu em Delhi. Fui para a Índia
bastante preocupada com os cheiros que encontraria; pois me preocupei à toa.
Não cheirei nada no país que já não tivesse cheirado, e bem pior, depois da
passagem de um bloco pelas ruas do Rio. A exceção foi na Jama Masjid, a grande
mesquita. Em frente ao magnífico edifício havia uma muvuca completa, em que se
misturavam no ar os cheiros dos perfumes usados pelos indianos, das frituras
preparadas pelos vendedores de comida, dos animais que seriam sacrificados no
dia seguinte (estávamos às vésperas do Eid) e de um esgoto nauseabundo. Fiquei
em estado de choque nasal — e devo ter ficado também meio esverdeada, pois logo
um rapaz me ofereceu um frasco minúsculo com um cheiro suficientemente forte
para encobrir os demais pela módica quantia de cinquenta rúpias. Mal sabia ele
que eu teria dado qualquer coisa por aquilo!
Ali, de frasquinho nas ventas, tive plena consciência
de que estava o mais perto possível do cheiro com que a Humanidade conviveu,
universalmente, até descobrir as primeiras noções de higiene, há meros 200
anos.
Na sequência eu ia a Varanasi, antiquíssima cidade à
beira do Ganges, onde, além de todos os cheiros já descritos, me esperava,
ainda, a fumaça das piras de cremação. Pelo sim, pelo não, comprei mais um
vidrinho de sais aromáticos do vendedor, que estava tendo um ótimo dia com os
firangs. Cheguei a pensar em cancelar a viagem, o que teria sido um grave erro.
Varanasi é a cidade mais impressionante que já visitei. É linda, está suspensa
no tempo e cheira predominantemente a incenso e especiarias. Tem sua cota de
ruas mal cheirosas, mas nada que se compare ao que encontrei em Delhi.
Quanto às piras funerárias, não cheiravam nem fediam.
Os indianos dizem que isso se deve a Krishna; já eu acho que se deve à brisa.
Só vim a descobrir qual é o cheiro que temos quando nos cremam em
Pashupatinath, na área sagrada de Kathmandu, onde Krishna e o vento não
trabalham, e onde não há incenso que dê jeito no ar. Muitos ocidentais mais
sensíveis passam mal, mas eu estava curiosa demais para me dar a esse luxo.
Mas se o fedor do passado me interessa, mais ainda me
interessa o perfume. Adoro incensos e gosto de imaginar que nos acompanham
desde tempos imemoriais. Daria tudo para saber com que cheiro ficava Cleópatra
depois dos seus famosos banhos e quais eram os perfumes favoritos dos egípcios
e dos romanos. Podemos ter uma vaga ideia disso indo às perfumarias orientais
que ainda trabalham com óleos essenciais naturais. Os cheiros de origem animal,
como o ambar gris e o musk, ou os extraídos de flores, de especiarias e de
madeiras, continuam basicamente iguais.
Durante séculos e séculos tivemos uma paleta de
fragrâncias mais ou menos imutável. Só começamos a cheirar de acordo com os
nossos tempos em 1889, ano em que a Torre Eiffel foi erguida em Paris e em que
um jovem perfumista chamado Aimé Guerlain inventou de usar moléculas
sintéticas.