Aprendi,
em conversas com amigos compositores, que, no cabo de guerra entre
a
liberdade de expressão e o direito à privacidade, muito cuidado é
pouco
Tenho
um coração libertário. Sou o típico coroa que foi jovem nos anos
60. Recebi anteontem o e-mail de um cara de quem gosto muito — e
que é jornalista — com proposta de entrevista por escrito sobre a
questão das biografias. Para refrescar minha memória, ele anexou um
trecho de fala minha em 2007. Ali eu me coloco claramente contra a
exigência de autorização prévia por parte de biografados. E
pergunto: “Vão queimar os livros?” Achei aquilo minha cara.
Todos que me conhecem sabem que essa é minha tendência.
Na casa de
Gil, ao fim de uma reunião com a turma da classe, eu disse, faz
poucos meses, que “quem está na chuva é para se molhar” e
“biografias não podem ser todas chapa-branca”. Então por que me
somo a meus colegas mais cautelosos da associação Procure Saber,
que submetem a liberação das obras biográficas à autorização
dos biografados?
Mudei
muito pouco nesse meio-tempo. Mas as pequenas mudanças podem ter
resultados gritantes. Aprendi, em conversas com amigos compositores,
que, no cabo de guerra entre a liberdade de expressão e o direito à
privacidade, muito cuidado é pouco. E que, se queremos que o Brasil
avance nessa área, o simplismo não nos ajudará.
O modo como a
imprensa tem tratado o tema é despropositado. De repente, Chico,
Milton, Djavan, Gil, Erasmo e eu somos chamados de censores porque
nos aproximamos da posição de Roberto Carlos, querendo responder ao
movimento liderado pela Anel (Associação Nacional dos Editores de
Livros), que criou uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade)
contra os artigos 20 e 21 do Código Civil, que protegem a intimidade
de figuras públicas. Repórter da “Folha” cita trechos de algo
dito por Paula Lavigne em outro contexto para responder a sua carta
de leitor. Logo a “Folha”, que processou, por parodiá-la, o blog
Falha de S.Paulo.
A
sede com que os jornais foram ao pote terminou dando ao leitor a
impressão de que meus colegas e eu desencadeamos uma ação, quando
o que aconteceu foi que nos vimos no meio de uma ação deflagrada
por editoras, à qual vimos que precisávamos responder com, no
mínimo, um apelo à discussão. Censor, eu? Nem morta! Na verdade a
avalanche de pitos, reprimendas e agressões só me estimula a
combatividade.
Tenho
dito a meus amigos que os autores de biografias não podem ser
desrespeitados em seus direitos de informar e enriquecer a imagem que
podemos ter da nossa sociedade. Pesquisam, trabalham e ganham bem
menos do que nós (mas não nos esqueçamos das possibilidades do
audiovisual). Não me sinto atraído pelo excesso de zelo com a vida
privada e muito menos pela ideia de meus descendentes ficarem com a
tarefa de manter meu nome “limpo”. Isso lhes oferece uma
motivação de segunda classe para suas vidas.
Também neguinho pode
vir a ter um neto que seja muito careta e queira fazer dele o burguês
respeitável que ele não foi nem quis ser. Mas diante dos editoriais
candentes, das palavras pesadas e, sobretudo, das grosserias
dirigidas a Paula Lavigne, minha empresária, ex-mulher e mãe de
dois dos meus três filhos maravilhosos, tendo a ressaltar o que meu
mestre Jorge Mautner sintetizou tão bem nos versos “Liberdade é
bonita mas não é infinita /Me acredite: liberdade é a consciência
do limite”. Mautner é pelo extremo zelo com a intimidade.
Autores
americanos foram convocados para repisar a ferida do sub-vira-lata.
Nada mais útil à campanha. (Americanos são vira-latas mas têm uma
história revolucionária com a qual não nos demos o direito de
competir.) Sou sim a favor de podermos ter biografias não
autorizadas de Sarney ou Roberto Marinho. Mas as delicadezas do
sofrimento de Gloria Perez e o perigo de proliferação de escândalos
são tópicos sobre os quais o leitor deve refletir. A atitude de
Roberto foi útil para nos trazer até aqui: creio que os termos do
Código Civil merecem ser mudados, mas entre a chapa-branca e o risco
marrom devem valer considerações como as de Francisco Bosco.
Ex-roqueiros bolsonaros e matérias do GLOBO tipo olha-os-baderneiros
para esconder a força que a luta dos professores ganhou na cidade me
tiram a vontade de crer em opções fora da esquerda entalada. Me
empobrecem. Ficaremos todos mais ricos se virmos que o direito à
intimidade deve complicar o de livre expressão. E se avançarmos sem
barretadas aos americanos.
Ouve-se aqui minha voz individual. Quiçá
perguntem: ué, os jornais deram espaço, pediram entrevistas: Tá
chiando de quê? Pois é. Meu ritmo. Roberto, Chico, Milton e os
outros estão mais firmes: nunca defenderam nada diferente. Esperei o
Procure Saber buscar seu timbre, olhei em volta e deixei pra falar
aqui.