O mal como algo “comum”
prospera como uma patologia das aparências
Hanna Arendt está em alta. Aqui e na Europa
discute-se o legado de seu pensamento, com bons comentários e teses, sem falar
no impactante filme homônimo de Margarethe von Trotta. Sua ideia mais
conhecida, sobre a banalidade do mal, permitiu reler o genocídio nazista como
efeito de uma superestimação do modo de vida burocrático-administrado e de
nossa paixão pela obediência – e não como uma súbita epidemia de psicopatas na
Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na União Soviética de Stalin.
A ideia da banalidade do
mal e sua força descritiva, tanto no que se refere à impessoalização dos
carrascos voluntários, quanto à falta de resistência das vítimas, apoia-se em
uma concepção muito interessante sobre o que vem a ser o nosso mundo de
aparências. O mal como algo “comum” prospera como uma patologia das aparências.
Ao contrário da vida, que se desenvolve em um ciclo de produção e consumo, no
qual dominam os processos em permanente necessidade de reposição, o mundo é
composto por acontecimentos, obras e atos que permanecem como contingência ou
como impossibilidade. A mistura entre público e privado formou um novo tipo de
sociedade que gradativamente reduziu a dimensão política, que deveria incluir
atos de criação, à mera reposição de processos sociais. Dessa maneira, perdemos
a possibilidade de entabular verdadeiros atos, e desenvolvemos uma existência
que sentimos como meramente funcional – problema bem retratado em Um homem
sério (2009), dos irmãos Cohen.
Verdadeiros atos, aliás,
são poucos: dizer sim, dizer não, prometer e perdoar. Mas quando eles acontecem
temos sempre imprevisibilidade dos resultados e irreversibilidade do processo,
combinadas com a criação de uma nova realidade que pressiona pelo gradual
anonimato dos autores. Por exemplo, quando dizemos “eu te amo”, como um ato,
essas quarto condições são atendidas. Antes de amar todos são possíveis (imprevisibilidade),
mas quando ele acontece só um é necessário (irreversibilidade). Quando o ato
acontece, cria um novo estado de existência, que torna seus agentes únicos.
Autores são paradoxalmente anônimos, pois suas identidades pregressas
desaparecem como efeito do ato. Aparecer opõe-se tanto a “ser” quanto a
“desaparecer”. Há, portanto, contingência e impossibilidade presentes no ato,
fazendo com que sejam criadas condições próprias ali onde “pareciam”
impossíveis. Até aqui Hanna Arendt caminha de modo convergente com Hegel e
Lacan.
O problema do humanismo é
que sua crítica da lógica das aparências o leva a advogar algum tipo de
essencialismo por trás das aparências, que de certa forma seria o verdadeiro
autor dos atos humanos. Ora, a banalidade das aparências nem sempre justifica a
existência de essências encobertas ou perdidas, autênticas ou verdadeiras. A
banalidade das aparências só é perigosa – nos convidando ao sentimento de
irrelevância e ao seu correlativo ressentimento social – se é incapacitante
para o ato, seja de pensar, querer ou julgar. E aqui o antídoto deve ser
buscado em Freud.
Refiro-me a Lucian Freud, em exposição no Museu de Arte de
São Paulo (Masp), neto do criador da psicanálise que se tornou um expoente da
pintura figurativa na virada do século. Em um momento no qual a lógica das
aparências se tornava suspeita e a arte partia para o irrepresentável como
alternativa formal, Lucian insistia no grotesco, na caricatura e na deformação
como maneira de mostrar que nem toda aparência é banal. Há aparências que são
“acontecências” e outras que são só “parecências”. Como ele mesmo dizia:
“Retrato as pessoas não pelo que elas parecem ser, e não apesar do que elas
parecem ser, mas do modo como elas acontecem ser (happen to be)”.