Gabeira
sempre se manteve à margem, no acostamento,
cruzando a pista vez por
outra, mas no contrafluxo
Em
1976, 1975, não me lembro mais, assisti a um "Globo Repórter",
dirigido por Walter Lima Júnior, sobre contatos imediatos de
terceiro grau no Brasil.
O
que prometia ser um programa sobre a visita de seres de outros
planetas ao Planalto Central revelou tratar-se de algo bem mais
perturbador. Embrenhado nas veredas de Minas e Goiás, Lima Júnior
colheu o depoimento de capiaus que viviam isolados em casas de pau a
pique e afirmavam ter sido abduzidos por extraterrestres.
O
caso mais impressionante narrava a história do amor entre um matuto
e uma ET.
Levado
por um facho de luz, o caipira jurava ter despertado em uma nave
espacial, onde fora examinado, não sabia por quanto tempo, por uma
junta de médicos alienígenas. Ao cruzar os olhos com um deles, uma
ela, enamorou-se. E foi correspondido.
Encontrado
em um campo ermo, uma semana após a suposta abdução, foi trazido
de volta para casa. Agora, lamentava a falta da amada e passava as
noites a olhar as estrelas.
Surpreendia
o caráter experimental da reportagem. Lima Júnior fazia parte de um
grupo de cineastas convidado para produzir especiais para o horário
nobre do telejornalismo. Ao receber a encomenda de um "Eram os
Deuses Astronautas?", levou ao ar um tratado sobre a loucura.
O
programa de estreia de Fernando Gabeira na Globo News me lembrou
imenso o "Globo Repórter" de Lima Júnior. Gabeira optou
pelo tema dos andarilhos da via Dutra. Gente que largou a família,
ou jamais teve uma, e perambula pela rodovia.
Com
aquela voz inconfundível, lerda, pausada, o verde Gabeira mata a
sede em uma fonte de água limpa, fala da abundância do recurso
natural na principal ligação entre o Rio e São Paulo e da sua
importância na sustentabilidade da vida dos "easy riders".
E
aborda o medo, a violência e a solidão que assombra os errantes. Um
rapaz mostra a carteira de documentos escondida no fundo da mochila,
diz tratar-se de seu bem mais precioso. É de uma melancolia ímpar.
Gabeira
poderia ter se debruçado sobre a Síria, os "black blocs"
ou a alta espionagem, mas preferiu ser existencialista. Por quê?
Havia
uma clara identificação entre o repórter e o caminhante. O homem e
sua circunstância. Há muito, desde que se livrou dos dogmas de
esquerda, o ex-guerrilheiro, escritor e deputado federal examina o
limite entre a liberdade do indivíduo e o interesse comum.
Gabeira
sempre se manteve à margem, no acostamento, cruzando a pista vez por
outra, mas no contrafluxo, na contracorrente. Vendo-o na TV,
interessado por uma escolha tão radical de vida, me veio a sensação
de que a obra era um elogio ao livre-arbítrio. Uma quase
autobiografia.
A
retrospectiva dos últimos 40 anos da "Veja" traz uma foto,
mais que foto, o "portrait" de Gabeira em Trancoso, deitado
sobre um tronco de árvore à beira-mar, coberto apenas com a mítica
tanga herdada da prima, Leda Nagle.
A
imagem é bonita, provocante, aborígine, homem-fêmea, e explica o
choque dos que esperavam a volta do revolucionário. O microquadrado
de crochê lilás com debrum amarelo é pequeno demais para acomodar
os pelos da virilha, o elástico é frouxo, e Gabeira está com as
pernas abertas, de lado, mas abertas. Ele ri feliz, bronzeado, na
Bahia, depois do tortuoso inverno e da convivência com a moral
avançada dos países nórdicos. É o retrato de um homem livre.
Nos
quase três meses em que passei acampada no Xingu, durante as
filmagens de "Kuarup", nenhum índio superou em graça um
Yawalapiti de nome Palavra. Palavra era capaz de acertar uma mosca
com uma flecha a cem metros de distância. Era gentil, humorado e
sensível. Foi o mais próximo do ideal de índio que eu já cheguei.
Palavra
era místico e viajante, gostava de cruzar longos trechos de floresta
a sós. Uma noite, no meio do caminho que levava até a exuberante
aldeia dos Camaiurá, sentiu uma letargia súbita e se amparou para
não cair. Foi quando um disco voador surgiu flutuando sobre uma
árvore à sua frente. A aparição girou as luzes, dançou, rodou,
até desaparecer.
O
delírio do Palavra dava a dimensão da profundidade dele.
É
por isso que na semana em que a "Economist" estampa a capa
do Cristo Redentor colapsando sobre a Guanabara, "I go looking
for flying saucers in the sky".