O
investimento da paixão é tamanho que sua perda
precisa ser negada a
qualquer custo
"O
inferno não contém fúria igual à de uma mulher rejeitada." A
citação de William Congreve, erradamente atribuída a Shakespeare,
fala de um dos momentos mais perigosos da convivência humana: a
separação, o desprezo dos apaixonados pelo objeto de sua devoção.
É
curioso que a história tenha guardado ícones femininos dessa fúria
(quem viu "Atração fatal", 1987, Glenn Close e Michael
Douglas, nunca mais se esqueceu, homens têm calafrios só de
lembrar).
O
mesmo vale para o homem rejeitado (as óperas "Carmen", de
Bizet, e "Os Palhaços", de Leoncavallo, terminam com
homens rejeitados assassinando suas mulheres, enquanto cantam seu
amor por elas).
A
vingança que se segue à rejeição é tamanha, que dá uma ideia do
monumental terremoto psíquico que ela envolve. Homens costumam ser
mais diretos, assassinam pessoalmente. Mulheres, mais elaboradas
(veneno; contratação de um assassino de aluguel; sequestro de
filhos dele; perseguição implacável --"Vou dedicar minha vida
a tornar a sua um inferno").
Mas
mulheres atiram, e homens perseguem também.
O
"stalking" ("perseguição implacável") de
outros tempos --telefonemas desligados no meio da noite; lixo
revirado; aparições de surpresa; barraco armado na frente do
prédio; cartas anônimas; difamação --vai sendo substituído pelo
instrumento de perseguição mais diabólico já inventado: a
internet.
Ela
permite fuçar, não mais o lixo, mas todo o conteúdo de e-mails.
Possibilita difamar, não com palavras, mas com filmagens e fotos
íntimas postadas na rede. Nas mãos de um bom hacker, a devassa
completa da vida do outro. O inferno tornou-se muito pior na era da
informática.
Mas,
afinal, o que move tamanho investimento maligno? Chico Buarque
cantou: "Dei pra maldizer o nosso lar, pra xingar teu nome, te
humilhar e me vingar a qualquer preço, te adorando pelo avesso, pra
mostrar que ainda sou sua".
Aí
mora a chave: o investimento da paixão é tamanho que sua perda
precisa ser negada a qualquer custo. Eis porque o "amor"
precisa ser afirmado mesmo com seu objeto morto: o cadáver é a
posse definitiva.
"Se
ela já estava separada dele havia tempos, por que ele foi matá-la
quando ela arranjou um namorado novo?" São truques da paixão:
imaginar a mulher com outro homem é capaz de reacendê-la, pois dá
um enorme tesão (vide "swings", "ménages").
Há
duas espécies de ciúme: o sexual (dos homens, que sempre correram o
risco de criar o filho de outro) e o de prestígio (das mulheres, que
detectam desinvestimento nelas, mesmo que seja em favor do futebol,
do computador ou dos amigos do marido). Isso fala só do mais
frequente. O de praxe é haver sempre uma mistura dos dois.
Mas
como o momento perigoso é o do crime passional, precisamos entender
que a paixão (do latim "passio", cuja única tradução é
"sofrimento") é um programa de loucura transitória, um
investimento de toda nossa vida, não numa pessoa, mas na idealização
de alguém. Por isso, ela pode prosseguir depois da perda, mesmo
depois da morte.
Quem
ama, não mata. Quem está apaixonado, sim.