O
"eu" deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em
sinal de pudor e vergonha
Meu
Deus, como ter um "eu" cansa! Os místicos têm razão. Não
é necessário ser um "crente" para ver isso, basta ter
algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o
"eu". E a modernidade é toda uma sinfonia (ou melhor, uma
"diafonia", contrário da sinfonia) para este pequeno "eu"
infantil.
Outro
dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com
malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.
Que
vergonha. É o tal do "eu" que faz isso. Ele precisa
comprar, adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O "eu"
sente um "frisson" num outlet baratinho em Miami. O mundo
faz mais sentido quando ele economiza US$10. E o pior é que, neste
mundo em que vivemos, faz mesmo sentido. Qualquer outra forma de
sentido parece custar muito mais do que US$ 10.
A
filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é "wants",
para se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos
traduzir de modo livre por "quereres". O "eu" é
um poço sem fundo de "wants". Isso me deprime um tanto.
Como
dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno
autoritário, o "eu": ele exige mais sucesso, mais
autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares,
mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais
eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio,
melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta
um materialista grosseiro.
Outra
demanda do "eu" que enche o saco é querer se conhecer.
Você conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de
semana para fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para
jardins "fakes" na Raposo? E pior, quem tira seis meses
para se conhecer depois dos 40 anos e acha legal? O autoconhecimento
só é sério quando deságua em autoironia.
O
império do "eu" se revela quando vivemos pela angústia de
torná-lo "resolvido". Nada é mais típico dessa angústia
estéril do que alguém sempre atento às próprias dores.
Outra
armadilha típica do mundinho do "eu" é a idolatria do
desejo. A filosofia sempre problematizou o desejo como modo de
escravidão, e isso nada tem a ver com a dita repressão cristã (que
nem foi o cristianismo que inventou) do desejo. Problematizar o
desejo tem mais a ver com um conhecimento sutil, fruto da
experimentação que a realização do desejo sem idealizá-lo traz.
A idealização do desejo é marca da condição adolescente ou
reprimida.
O
"eu" falante inunda o mundo com seu ruído. O "eu"
mais discreto tece um silêncio que desperta o interesse em
conhecê-lo. Mas hoje vivemos num mundo da falação de si, como numa
espécie de contínuo striptease da alma. O corpo nu é mais
interessante do que a alma que se oferece. Por isso toda poesia
sincera é ruim (Oscar Wilde). O "eu" deve agir como as
mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.
A
alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito
compreende o ridículo do culto ao "eu". Uma leveza
peculiar está presente em narrativas gregas (neoplatonismo),
budistas (o "eu" como prisão) ou místicas (cristã,
judaica ou islâmica).
Conceitos
como "aniquilamento" (anéantissement, comum em textos
franceses entre os séculos 14 e 17), "desprendimento"
(abegescheidenheit, em alemão medieval) e "aphalé panta"
(grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da
obsessão do "eu" por si mesmo.
A
leveza nasce da sensação de que atender ao "eu" é uma
prisão maior do que atender ao mundo, porque do "eu" nunca
nos libertamos quando queremos servi-lo. Ele está em toda parte como
um deus ressentido.
Por
isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso "Ascese",
diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada
é que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista
André Comte-Sponville, no seu maior livro, "Tratado do
Desespero e da Beatitude", defende o "des-espero" como
superação de uma vida pautada por expectativas.
Entre
as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o
descanso das pedras nos espere. Amém.