Aos
11 anos, quando entrei no ginásio e ganhei do meu pai uma caneta
Parker com meu nome gravado, senti que algo muito sério havia
ocorrido comigo. Virei ginasiano , dizia o pai que, criado em Manaus,
foi um orgulhoso aluno do Ginásio Amazonense Pedro II. Naquele
tempo, era comum o uso do paletó e no seu inútil bolsinho de fora
usava-se um lenço combinando com a gravata e, no canto do bolso,
como enfeite e sinalizador social, enfiava-se uma caneta! Éramos um
país de analfabetos antes de sermos um país de subletrados e de
burros doutores ideologicamente pautados. A caneta de ouro compondo a
figura do doutor (substituto do aristocrata) sugeria que o sujeito
assinava o nome.
Compreendi
o significado da caneta demarcadora de minha passagem para o curso
secundário quando, já universitário e querendo ser revolucionário,
um colega politizado relacionou a nossa geração aos privilégios e
a contrastou com os oprimidos sem escola que escreviam de modo
hesitante, desenhando as letras, traçando-as no papel ao contrário
do que manda a caligrafia clássica.
Escrever
à tinta , como se dizia, era algo ritualizado que ia da escolha do
papel para o que se ia dizer, pois a caneta-tinteiro borrava e sua
escrita não era facilmente apagada.
Escrever
com a minha Parker preta listrada de dourado era fazer a passagem do
transitório e barato lápis, cujas pontas gastavam e quebravam e
cuja escrita não resistia a uma banal borracha, para o definitivo:
para a escrita à tinta . Que responsabilidade eu tinha quando pegava
essa caneta para escrever e foi com ela que tracei as sempre mal
traçadas linhas da minha primeira carta de amor. Um amor a ser tão
eterno quanto a tinta e que não durava mais do que um long-play de
Frank Sinatra.
Ali
eu vivi um inexorável sentimento de passagem do tempo. Estava
ficando velho. E velho fui ficando quando alguma passagem ocorria na
minha vida. Todas as primeiras e últimas vezes foram marcadas e eu
só tive consciência delas porque algo ou alguém as assinalava.
A
sensação de transitar por várias etapas críticas do meu ciclo
existencial que começou com o nascimento e o batismo; seguiu para a
infância do time de futebol e da primeira comunhão; prosseguiu para
puberdade dos bailes, do primeiro namoro e beijo; desembocou no
casamento; foi agraciado com a paternidade e um dia virá com a morte
- o evento mais crítico de todos o qual, infelizmente, será o único
que eu não vou poder compartilhar com vocês, meus queridos leitores
- foram todos construídos por outras pessoas.
Foram
todos urdidos de fora para dentro, por meio de conversas, presentes,
admoestações, rituais, aprovações, elogios e reparos feitos por
um outro. Acentuo esse outro porque, sem ele, eu não seria capaz de
saber que tento ser simultaneamente um individuo autônomo e livre; e
uma pessoa devedora de muitas pessoas e relações as quais
despertaram os vários eus que convivem dentro de mim.
O
individualismo do anglo-eurocentrismo, adotado com a santa ignorância
de tudo o que chega de fora no Brasil, pensa que pode ficar preso ao
velho e inconsciente solipsismo do só eu sei o que sei passou comigo
e portanto ninguém melhor do que eu para falar da minha vida , como
revelou com o viés dos censores o rei Roberto Carlos, numa
entrevista recente. Mas o holismo que sustenta e legitima o
individualismo e pretende proteger a vida pessoal dos que vivem se
expondo por meio de seus talentos criativos diz que nós só sabemos
quem somos quando ganhamos de presente uma caneta; quando um amigo
nos corrige; ou quando somos atingidos por uma opinião cuja maior
virtude é mostrar algo não visto ou oculto de nós mesmos.
Por
isso as autobiografias são tão fantasiosas quanto as biografias.
Pois elas só existem como artefatos construídos e qualquer
compromisso com a liberdade de falar do outro com liberdade - como
argumentou um mestre do gênero, Ruy Castro, na Folha de S.Paulo do
dia 1º do corrente - não é só um dado básico da visão de fora
(o ponto de vista do outro), mas da própria vida social que, em
todas as suas dimensões, requer e precisa do outro. Seja como um
aliado, seja como um advogado, seja como um contrário e, mais que
isso, como um alternativo. Aquele que passou pelo que passamos e que,
com os mesmos eventos e experiências, construiu um quadro diverso do
nosso. Tentar controlar e reduzir a visão de fora é uma violência
porque é um ato de negação do outro. Esse outro que é o sal e,
como dizia Sartre, o inferno da vida.
Não
fossem esses atos externos eu não mudaria de ideia e de hábitos.
Jamais saberia que tenho sido muitos. Mas mesmo na dúvida e no
sofrimento da revelação das minhas limitações ou da minha
pusilanimidade eu sei que o outro é básico na produção da minha
vida. Se eu fosse um cantor, eu saberia pela prática que é esse
outro (o chamado público) quem me consagra e me dá como um dom a
incrível relação chamada sucesso.