Encontrar novos caminhos entre ideias e conceitos depende, sobretudo, de flexibilidade cognitiva: a capacidade de mudar o conjunto de regras para resolver problemas
Não, ela não é obra do lado direito do cérebro, apesar do que pregam as várias oficinas e livros que pedem seu dinheiro em troca de dicas para “desenvolver o lado direito do seu cérebro”. Nem a criatividade, nem a arte, nem a emoção são funções do lado direito do seu cérebro – e sim de várias estruturas diferentes, espalhadas órgão afora, e de seus dois lados.
A lenda vem de meados do século 19, quando a neurociência era ainda recém-nascida. Quase nada se conhecia sobre o funcionamento do cérebro, mas a descoberta de que a produção da fala depende do hemisfério esquerdo, anunciada por Paul Broca em 1861, suscitou uma revisão pela biologia do conceito de que os dois lados do corpo são equivalentes. Uma tabela publicada no final daquele século ilustra a proposta de revisão: o lado esquerdo, relacionado à fala, seria “logicamente” também associado à racionalidade, à volição, ao consciente, e à masculinidade, e... à cor branca da pele (ou seja, tudo aquilo que o homem branco europeu, o dono do mundo na época, associava a si mesmo). O que sobrou para o outro lado do cérebro? Ora, a irracionalidade, o emocional, o inconsciente, a feminilidade, e... a cor escura da pele. E a criatividade entrou de gaiata na história como mais uma propriedade do “lado direito, emocional, do cérebro”.
Cento e cinquenta anos mais tarde, a neurociência atesta que lateralização funcional existe, sim – mas apenas em relação à linguagem (mais ao lado esquerdo) e à atenção (mais ao lado direito). Não há diferença no grau de lateralização entre homens e mulheres, nenhum tipo de evidência de que qualquer lado do cérebro predomine mais ou menos em pessoas diferentes.
E a criatividade, essa capacidade de recombinar informações já existentes para resolver problemas de maneiras novas? Segundo a neurociência, ela resulta de um processo semelhante no cérebro: da combinação “criativa” da atividade de partes do cérebro que já participam em outras funções, e não da atividade de algum “centro da criatividade” cerebral.
No final dos anos 1990, quando se tornou possível acompanhar a atividade cerebral em voluntários acordados e saudáveis, o neurocientista inglês Stephen Kosslyn mostrou que a imaginação – a capacidade de visualizar mentalmente o que não está acessível aos olhos ou outros sentidos – usa as mesmas partes do cérebro que recebem informações dos sentidos.
O mesmo se aplica a outras funções. A capacidade de encontrar novos caminhos entre ideias e conceitos, e novos conceitos a partir das mesmas ideias, depende do esforço conjunto de regiões dos dois lados do cérebro que também participam da memória de trabalho, da representação de objetos e ações, de significados emocionais complexos, do prazer e da satisfação, e sobretudo da flexibilidade cognitiva: a capacidade de mudar o conjunto de regras em uso. Na hora de ser criativo, o cérebro usa a si mesmo de outra maneira e descobre um caminho alternativo para resolver o problema da vez.
Acontece que cada uma dessas funções depende de expe-riência real com o mundo. Somente assim o cérebro aprende a enxergar, a representar objetos e ações, a raciocinar. Um cérebro que nunca viu araras ou ultravioleta não sabe imaginar o que é uma arara, ou a cor do ultravioleta. Se a imaginação depende dos sentidos e os sentidos dependem de experiência, então a imaginação depende de experiência.
A criatividade, portanto, pode ser desenvolvida junto com a experiência do mundo. É só o córtex pré-frontal deixar o resto do cérebro se soltar.
____________________________