Lembrou de quando recebeu a notícia de que ia ter que se transferir. Perdeu o chão. Como assim? Tinha direitos, não tinha? Não. Na verdade, alguns direitos só existem quando são de interesse de quem está no poder. Aprendeu essa também.
A vida toda estruturada. Estava ali porque era mais cômodo, mais perto. Feliz? Com certeza não. Jamais seria feliz ali. Mas o desconhecido assusta. E mudar às vezes dói tanto… E se fosse pior? E se fosse mais longe? E se não gostasse tanto?
Foi tratada como lixo, um traste jogado fora. Um enfeite que, agora, mudado o estilo da decoração, não agradava mais. Depois de tantos anos e toda dedicação. Se sentia desrespeitada. Sentiu não. Foi mesmo – e muito. Na impossibilidade do momento, decidiu: não lutaria contra. Ia se deixar levar. Iria ao sabor do vento, como folha solta no ar. Alguém, em algum lugar, com algum nome, haveria de protegê-la. Confiou.
Lembrou da Alice no País das Maravilhas perguntando:
- Gato, onde é a saída?
- A saída depende de onde você quer ir.
Para onde ela queria ir? Para onde fosse bem tratada, só isso. Só desejava ser bem tratada. Ali, nunca havia sido. E, vamos combinar, ser bem tratada é o mínimo de dignidade que se pode esperar de qualquer tipo de relação, seja ela qual for.
Mudou. Como forma de complementar o horário, foi parar em dois lugares diferentes. Ambos muito bons. Adorou. Tem sido sim, muito bem tratada e está feliz. Reestruturou a vida. Se livrou de um peso, quase um encosto. Sua vida não se arrasta mais. Agora sua vida voa.
Eis que, por ironia da vida, ela teve que voltar lá para uma reunião. Naquele instante, parada em frente ao antigo portão, reviu toda situação. A vida é assim mesmo, irônica, debochada, um prato cheio de sarcasmo. Apronta cenas mais escrachadas do que novela mexicana. Situações que a gente olharia com reservas e acharia forçação de barra. A vida faz dessas com a gente. E, provavelmente, se diverte assistindo a cada capítulo. Somos sua novela mexicana. Há que se ter bom humor com ela também. Não há outra saída possível para manter um nível razoável de saúde mental.
Naquele retorno, encontrou amigos antigos, queridos. Ouviu as mesmas queixas de antes. Queixas que haviam sido suas também. A oportunidade se abriu para todos, muitos foram. Mesmo assustados, meio perdidos, desamparados, aceitaram o desafio e se lançaram no vácuo, sem garantias. Muitos não foram. Cada um com seus motivos. Não estava ali para julgar. Ela tinha ido. Esse era seu alívio.
Pensou em como estaria, se não tivesse mudado. Se, por medo do desconhecido, tivesse permanecido estagnada, como antes.
A vida é um tipo de trem. Chega na pressa, desembarca uns e embarca outros. Não anuncia o destino abertamente. Você entra sabendo que é por sua conta e risco. A outra opção é ficar na plataforma vendo a vida passar, na triste postura de dar adeus aos que vão. E depois voltar para casa. Retornando para o mais do mesmo.
Talvez a vida abra uns portais, eventualmente. E convide – vem? – desafiando, instigando, pagando para ver a capacidade de cada um. Então aguarda por certo tempo para que se tenha coragem de pular, se jogar. Se a gente resolver investir e embarcar, ela cobre a aposta e vai junto ao infinito – e além.
Se a gente fica na retranca, empaca, desiste, o portal se esfumaça e se desfaz. Aquela saída se fecha. Até uma próxima oportunidade… Ou não. Quem sabe?
A vida é jogo de aposta. Não se sabe o fim. Nem onde vai dar, nem os resultados de cada rodada. Viver é pular no escuro. Planejamentos, contas, mapas, tabelas, roteiros, tudo pode ajudar e até dar certo. Apenas pode. Então, a gente para, pensa, programa. Mas, na hora do vamos ver, é ir ou ficar, sabendo do risco.
De qualquer forma, sempre é preciso apostar em alguma coisa. Ficar de fora já é uma opção de aposta. Não esboçar atitude já é uma atitude. Quando você se omite e não faz a escolha já está fazendo sua escolha. À deriva, mal feito, mas está. Quando chega a sua vez da rodada, é a sua vez de agir. Vai jogar ou passar?
A vida se diverte assim e dá preferência às boas parcerias. Joga bem com quem aposta nela. Gosta de quem acredita que pode, e tenta ir em frente. Esses são, em geral, os melhores jogadores. Não que eles sejam privilegiados pela vida, que dela recebam mais vantagens ou coisa que o valha. Ao contrário, esses são os que, verdadeiramente, tratam a vida como prioridade. Essa é toda diferença.
Andei de tirolesa uma única vez. Nem preciso mais. Meus filhos adoram, vão repetidas vezes. Acho ótimo. Medrosa que sou, para mim uma vez está de bom tamanho.
Fui sem pressão externa, queria experimentar. Mas, depois de toda paramentada com os equipamentos de segurança, travei. Olhava para baixo e pensava: por quê? Porque me meti nisso? Avisei ao recreador que tinha desistido, não ia mais. Ele me olhou meio de saco cheio. Apontou para uma fila enorme atrás de mim. E me informou que agora, não havia essa alternativa. Pular dali eu não ia mesmo. Ainda travada, pedi então, que ele me empurrasse. Ele me empurrou de bom grado. Acho que até com certo prazer. Naquela altura do campeonato, faria qualquer coisa para se livrar de mim. Lá fui eu, pendurada, voando até o outro lado. Posso dizer que, se não fosse o medo tanto, aquilo poderia ter sido ótimo.
Assim passa a vida por nós. Provocando, desequilibrando, instigando, sugerindo e rindo. E nós seguimos como equilibristas amadores que somos. Ela empurra, a gente faz que cai, mas não cai. Às vezes, faz que cai e cai mesmo, se estabacando no chão. Levanta meio doído, começa de novo. Faz parte. Tem que ser assim. Triste é ficar só na arquibancada, espectador da própria vida.
Um ano novo começa. Planos, sonhos, estamos cheios de bons propósitos. Como nova partida do jogo. Novas apostas! A esperança de que agora vai! Ano novo, todas as fichas na mesa.
Tempo de recomeçar? Sim, mas temos que saber que o tempo de recomeçar, na verdade, é cada instante. Porque vida é susto, é perder o prumo, perder o norte e sempre, a cada minuto. E recomeçar.