Ao ver que não as alcançava, a raposa deu de falar mal das uvas. A mesma coisa aconteceu com a psicanálise, em relação à cura das doenças psíquicas: grande parte dos psicanalistas atuais desdenham da cura, como se ela fosse uma coisa menor e desprezível.
Um lacaniano conceituado com formação na França me contou que ouviu uma de suas colegas de linha teórica afirmar num congresso: “A finalidade terapêutica corrompe a psicanálise”.
Um lacaniano conceituado com formação na França me contou que ouviu uma de suas colegas de linha teórica afirmar num congresso: “A finalidade terapêutica corrompe a psicanálise”.
Que inversão de valores chocante!
Consideremos as origens da psicanálise: ela foi inventada por Freud, um neurologista que estava firmemente determinado a achar um meio de curar aquelas misteriosas manifestações doentias da mente.
Vamos pensar no conceito de cura: curar é eliminar o mal, mas também é cuidar, é atenuar o sofrimento, é conduzir para o bem. O curador de menores faz isso, ele cuida e orienta, não extirpa doença. Curar é, portanto, tratar, é a finalidade terapêutica, a tal que estava amaldiçoada pela psicanalista lacaniana.
Agora, um psicanalista não pode buscar uma cura parecida com a que o cirurgião faz quando retira um apêndice inflamado. Não, nós lidamos com tecido nobre: a memória e o desejo. O risco de se jogar fora o bebê junto com a água do banho é grande. O último que tentou isso foi o Dr. Egas Moniz, o português (!) inventor da lobotomia.
A cura psicanalítica consiste em desentranhar a memória e o desejo do cliente das invasões bárbaras que sua vida sofreu como resultado de uma criação incompetente, aquilo a que Freud deu o nome de Complexo de Édipo. Um cuidadoso e árduo trabalho – que parece arqueologia – vai tornando consciente para ele o que é seu, o que lhe pertence, e o que é problema de quem o criou, e que ele até então carregava como seu, de modo a que ele se torne dono de sua vida e de seu destino. Na medida do possível, claro. Que o psicanalista possa ser o parteiro do que cada um tem de melhor.
A cura também inclui transferência de tecnologia, de modo a que ele se torne analista de si mesmo pelo resto da vida, que saia do ninho do consultório para alçar voo solo. Esta era a análise interminável desejada por Freud, e não aquela de que Woody Allen falou: “Já faço análise há quatorze anos. Vou dar mais um ano ao analista. Se ele não me curar, vou a Lourdes…”
Perguntei àquele lacaniano: “Se não buscam a cura, o que buscam então?” Ele me disse que é a experiência do inefável (seja lá isso o que for), junto com a ideia de que o cliente deve inventar um sentido para sua vida e se responsabilizar por ele.
Ah, aí fizeram sentido várias coisas que me assombravam: se eles não se importam com cura, então não se importam com diagnóstico, nem com conceito de doença psíquica. Não espantam então sessões de quinze minutos ou menos. Nem que falem um dialeto incompreensível que se parece vagamente com o português (confundir é boa base para enrolar). Que deixem o cliente perplexo com declarações misteriosas ao fechar a sessão, e que despachem o cliente com o bordão: “Pense nisso!”