Os alimentos vilões e a onda das comidas funcionais e dietas restritivas, baseados muitas vezes em informações incompletas, pautam cada vez mais as escolhas alimentares.
De tempos em tempos, estudos científicos anunciam - e o jornalismo replica - o vilão e o salvador da vez na alimentação. Baseando-se nessas informações, disponíveis como nunca antes, pessoas fazem suas escolhas e orientam suas práticas em busca de uma alimentação mais saudável. A frase da chef Bela Gil que sugere a substituição de um ingrediente menos saudável por outro virou meme e foi tirada de seu contexto culinário milhares de vezes nas redes sociais.
Mas as substituições propostas estão ligadas à busca pelo ideal de alimentação saudável e ao fenômeno dos alimentos funcionais (aqueles que trazem algum benefício além de seus nutrientes) e dietas restritas, como a sem glúten ou sem lactose.
De acordo com esse modelo, aquilo que é ou não “permitido” muda periodicamente.
Gil ensina receitas naturais e é adepta da nutrição holística, filosofia alimentar que formula a importância da alimentação para a saúde e o espírito. Ela não descarta, entretanto, a importância do prazer na hora de comer. A obsessão com o saudável na alimentação elevada ao nível de patologia recebe o nome de ortorexia nervosa.
Trata-se de um distúrbio alimentar em que “o ortoréxico restringe mais e mais sua alimentação, até que se conte nos dedos (e de uma única mão) os componentes do cardápio”.
Reunindo pontos de vista de autoridades em saúde e alimentação foram sugeridas quatro perguntas a uma especialista: Rita Lobo, que é contra nortear escolhas pelos nutrientes.
A chef Rita Lobo, que comanda o programa “Cozinha Prática”, no canal pago GNT, e o site “Panelinha”, criticou no Twitter a concepção de alimentação ultra regrada após ser questionada por um espectador sobre por que não ensinava como fazer maionese com iogurte e óleo de coco em vez de óleo e gema.
Lobo disse também que a “moda do sem glúten” é leviana e que “fazer escolhas em função de nutrientes é distúrbio alimentar”. A definição de alimentação saudável da cozinheira, segundo ela própria, exclui ultraprocessados e passa pela comida brasileira tradicional, feita em casa.
Ela citou, ainda, o “Guia Alimentar para a População Brasileira”, cuja última versão foi lançada pelo Ministério da Saúde em 2014 com o objetivo de fornecer diretrizes para que a população tenha uma alimentação mais saudável, também baseada principalmente no consumo de alimentos frescos, não processados.
Drauzio Varella:
"nunca houve tantos modismos na dieta’
Em sua coluna no jornal “Folha de S. Paulo”, o médico escreveu, no dia 4 de fevereiro, sobre como chegamos ao que ele define como uma confusão gerada por estudos sobre alimentos, partindo do surgimento da agricultura há 10.000 anos.
Varella associa o que define como “modismo” a uma busca de soluções mágicas para problemas como sedentarismo e obesidade. Ele aconselha, como Lobo e o guia do Ministério da Saúde, que quem se perder em meio às informações desencontradas sobre a alimentação deve comer frutas, saladas e verduras em abundância e um pouco de todo o resto. Recomenda, além disso, que se “procure comer o que sua avó considerava comida”.
“Para confundir ainda mais, estudos com resultados que exigiriam interpretações estatísticas cautelosas e confirmação em pesquisas mais elaboradas ganham destaque nas mídias como se apresentassem conclusões definitivas. Num dia, o ovo é uma bomba de colesterol prestes a explodir as coronárias; no outro, asseguram que tem alto valor nutritivo. A carne de porco que já foi a mãe de todos os males está reabilitada, a de boi enfrenta suspeitas” Drauzio Varella Médico e escritor.
Quatro perguntas para Marcia Regina Viana:
Pesquisadora e professora do curso de Nutrição no campus de Macaé da UFRJ, Marcia Regina Viana é autora do estudo “A racionalidade nutricional e sua influência na medicalização da comida no Brasil” e fala sobre o conceito de “racionalidade nutricional” que define como a “preocupação exagerada com o conteúdo nutricional [do alimento], mais do que com o contexto social da alimentação, com a convivialidade, com o que ela pode trazer enquanto ato social além do conteúdo nutricional”.
Como e quando passamos, no Brasil e no mundo, a nortear nossas práticas alimentares pela racionalidade?
MARCIA REGINA VIANA - De uns tempos pra cá, há sim uma tendência maior das pessoas se preocuparem com o aspecto técnico ou nutricional [da comida], referente a quais nutrientes estão presentes nos alimentos que vão consumir. É o que tenho chamado de “racionalidade nutricional”. Mas é claro que, para adequar sua alimentação às suas necessidades, é preciso ter uma alimentação equilibrada. A racionalidade soberana vem de um caminho histórico da ciência, da Idade Moderna para cá, principalmente a partir do Iluminismo. Algumas disciplinas acompanharam esse caminhar da ciência, e a alimentação e nutrição não ficaram atrás. A ciência passou a ser o esquadro onde você enquadra um padrão esperado de saúde e de beleza. No Brasil em especial, depois da Segunda Guerra teve uma construção industrial. A tecnologia utilizada para atender as necessidades de guerra foi tão aprimorada na tecnologia de alimentos que quando findou aquela demanda sobrou mercado para direcionar essa produção de conhecimento e tecnologia. Houve um boom da indústria de alimentos. Muito por esse avanço na industrialização, foi-se criando uma necessidade de que a composição química adequada à nutrição humana do alimento industrializado fosse considerada. O lado ruim é que às vezes a conveniência do mercado sobrepuja uma suposta racionalidade ideal para seduzir o consumidor a comprar alguns alimentos que disponíveis em sua forma natural. A ideia passada é a de que o que é tecnicamente produzido é melhor. O empenho na produção artesanal, de preparar e cozinhar, foi sendo substituído aos poucos por comprar pronto. Esse cuidado com o fazer está voltando, e eu acho um movimento interessante, ele beneficia a alimentação. Por outro lado, existe uma exacerbação desse cuidado e vai para a linha da gourmetização funcional que existe agora. Além do preparo, existe a preocupação com o nutriente no ingrediente que proporciona na sua fisiologia um ganho ou funcionalidade esperada.
Essa racionalização é boa ou ruim? Quais são as consequências dela?
MARCIA REGINA VIANA - É boa e ruim. É boa quando você precisa dessa racionalização, como nos diversos casos em que é imprescindível que a alimentação seja racionalizada e os nutrientes muito bem dosados e acompanhados, como o dos diagnosticados de diabetes, hipertensão, patologias renais, alergias alimentares, problemas específicos e metabólicos em que a ingestão de um determinado nutriente precisa mesmo ser controlada. A “doença do glúten” ficou uma coisa quase globalizada, mas existem as pessoas com dificuldade de absorção. É por isso que a ciência da nutrição existe. Mas não podemos ter esse comportamento de ser reféns de um padrão alimentar. O nutriente é da boca pra dentro. A gente compra alimento, isso tem um contexto social, uma infraestrutura de disponibilidade, uma política de preços e de acessibilidade a ele. Com esse alimento a gente faz comida, seja ela gourmetizada ou não, em encontros ou em casa. E só a partir disso o nutriente vai ser consumido e tem seus caminhos no nosso corpo. Acho complicado em termos de realização dos sujeitos aliar a alimentação a mais uma normatividade exacerbada. Um ingrediente percebido, em um estudo, como tendo uma funcionalidade no corpo humano pode ser apenas ciência básica, de bancada, observada no laboratório. Para afirmar que essa funcionalidade será encontrada quando o alimento for ingerido falta uma etapa, um ensaio clínico, a comprovação com seres humanos. Falta um caminho metodológico que confirme que aquele elemento ou substância mantém a funcionalidade no corpo, que também não está em uma situação padrão, como no laboratório.
No que a divulgação dessas informações científicas sobre alimentação atrapalha?
MARCIA REGINA VIANA - Para o leigo, que desconhece a efetividade dos nutrientes, acaba causando uma mistificação da alimentação que causa esses segmentos das dietas. Essas informações que vão para os informes de revistas para matérias que exploram alimentação não são completas, muitas vezes não têm uma sequência de método de comprovação. Isso promove seguidores de uma dieta sem fundamentação, seguida porque é moda, porque todo mundo faz. É até perigoso em alguns aspectos.
Qual a relação entre a racionalização da alimentação, identidade e consumo?
MARCIA REGINA VIANA - As pessoas que consomem o conhecimento científico acabam querendo ter uma diferenciação por conta desse conhecimento. Elas querem se encontrar e se reconhecer de algum modo, se situar e projetar no mundo. Nós somos estimulados a “vencer na vida”, competir e ser melhores. Pode parecer muito chique conseguir uma refeição balanceada. Quando você se preocupa em tirar algum tipo de alimento da sua dieta, é sinal de que está investindo racionalmente nesse comportamento, você se destaca.
Se o suprassumo é o conhecimento científico, as pessoas buscam se aprimorar por meio dele. Se junto a isso a gente pensar que a sociedade é capitalista e que para consumir precisa haver sedução, vejo que ela acaba cavando novos produtos e deles surgem necessidades, isso direciona o consumo. Vejo essa maior preocupação [com a alimentação] como uma situação criada pela modernidade, pelo mercado.
Alguns produtos têm um selo [de saudável] para que sejam consumidos e atraentes, mas nem sempre esse selo garante o que está no produto. Vejo a racionalidade também como resultado da produção [de alimentos industrializados] e da sedução do marketing.
Fonte: NEXO