Luciana:
não tive que perdoar porque nunca o condenei.
Quem matou o Marden foi a sua
doença..
Em uma conversa franca e corajosa sobre o suicídio do
marido, a psicóloga mineira Luciana Rocha, hoje especialista no tema, nos ajuda
a entender, sem culpa ou condenação, o gesto extremo de quem tira a própria
vida.
Era pouco mais de meia-noite e, enquanto se preparavam
para dormir, Luciana e Marden tiveram uma conversa corriqueira sobre os planos
para o dia seguinte: a agenda de trabalho dos dois, uma festinha escolar dos
filhos. Deram-se um beijo de boa noite. Luciana e as crianças dormiam quando
Marden abriu a janela da sala e se jogou do 15º andar.
O salto para a morte aos 47 anos, depois de 15 de um
casamento amoroso e harmônico, com dois filhos de 10 e 5 anos, lançou a família
no absurdo vazio da dor e na vertigem da ausência auto-imposta e aparentemente
inexplicável. Luciana tinha 41 anos, era psicóloga há 20 e decidiu então
estudar o tema e se especializar em suicídio. Hoje, passados três anos daquela
noite, é capaz de entender à luz da ciência o que aconteceu com Marden e com
tantas pessoas que, como ele, tiram a própria vida, vítimas de um ou mais
transtornos mentais subestimados por eles mesmos e invisíveis aos olhos de quem
os cercam. Nesta conversa, a psicóloga mineira fala com enorme carinho do
marido e nos explica por que o suicida não é nem covarde nem herói.
O que você se lembra do dia da morte do seu marido?
Eu e o Marden tínhamos conversado sobre os planos do dia
seguinte: haveria uma festa na escola das crianças e eu não poderia comparecer
mas ele falou que iria. Me deu um beijo e disse que ia dormir no quarto do
nosso filho mais novo. Fui acordada pela minha irmã, que mora no mesmo prédio.
Quando cheguei na sala a encontrei chorando e me dizendo que alguma coisa
horrível tinha acontecido com o Marden. Na hora eu não entendi nada e disse que
ele estava em casa, no quarto do nosso filho. Abri a porta do quarto e ele não
estava. Na sala, a janela estava aberta e a rede de proteção havia sido
cortada. Ele deixou a tesoura bem à mostra no batente e se jogou do 15º andar.
Os pedaços cortados da rede ficaram no bolso dele. Acredito que tenha feito
isso para não haver dúvidas de que ele próprio a cortara antes de se jogar.
Deixou também uma longa carta, páginas e páginas com instruções minuciosas
sobre questões práticas e sobre o que devíamos fazer depois da sua partida.
A última conversa deu alguma pista do que ele estava
prestes a fazer?
Nenhuma. Eu sabia que estava passando por dificuldades na
empresa (ele trabalhava no ramo de entretenimento) mas, nada que não pudéssemos
superar. O Marden sempre foi uma pessoa muito alegre, animada, divertida. Nós
sabíamos que havia algo de bipolar no seu comportamento, uma doença que ele
subestimou e descuidou. Não se tratou como devia. Chegou a se medicar, mas sem
a devida constância. Parecia sempre muito bem disposto, otimista. Hoje, depois
de estudar o assunto, identifico nele características que o classificariam como
um suicida potencial. Ele tinha o que chamamos de “depressão sorridente”.
Sabe-se que 100% das pessoas que se suicidam tem um ou mais transtornos
psicológicos. E meu marido tinha esses fatores de risco. Um deles é não
enxergar uma solução para um problema. Há uma rigidez que os impede de pedir
ajuda. Eles acham que tem que resolver sozinhos um obstáculo que acreditam
intransponível.
Você se lembra dos seus primeiros pensamentos após o
ocorrido?
O que lembro, dentro do choque, foi de pensar em como eu
poderia contar para as crianças. O pai era muito amoroso, presente e carinhoso
com eles. Assim como comigo. Ele os colocou na cama para dormir e simplesmente
não estava mais lá no dia seguinte…
Eu não os acordei no meio da noite. Deixei que acordassem
de manhã e então me sentei com eles no sofá e contei que o pai havia sofrido um
acidente. Na mesma hora o meu filho mais novo perguntou: “O papai morreu?”. Eu
respondi que sim, o papai morreu. Disse que ele fora consertar a rede da janela
e se desequilibrou e caiu. Foi horrível: os dois choraram, saíram correndo. Me
disseram que era minha culpa, que eu não tinha segurado o pai. Eu contei que
não pude ajudá-lo porque também estava dormindo. Um ano depois, minha filha
mais velha me questionou sobre a veracidade do acidente e eu contei a verdade:
o pai se suicidara. Foi muito triste e naquele momento ela disse que a culpa
era dela, porque às vezes ela não aceitava os convites do pai para jantar. Eu
disse, imagine, vocês foram muito amigos, sempre juntos. Disse a ela que o pai
morreu porque estava doente mas nós não sabíamos, ele não sabia. Ele estava
muito doente e foi a sua doença que o matou.
Como foi para você enfrentar a culpa que por perder
alguém amado por suicídio?
Não me senti culpada em nenhum momento. Hoje, com o
conhecimento que tenho acho que poderia ter ajudado, mas naquele momento não
tinha.
Eu sigo a filosofia budista há 20 anos e graças a ela,
tenho uma aceitação maior dos fatos. Entendi, desde o início, que não adiantava
me revoltar. Tratei de focar nas qualidades do Marden e nas coisas boas que
vivemos, nós e nossos filhos. Tenho a convicção de que as coisas boas foram
muito maiores do que o fim trágico.
Você concorda com a teoria que diz que, no caso do
suicídio, assassino e vítima são a mesma pessoa e os sobreviventes tem que
lidar com esse sentimento ambíguo em relação a quem partiu?
Não concordo. O suicídio é multifatorial. Quando a pessoa
decide se matar, ela simplesmente não vê outra solução. Mesmo quem, como o meu
marido, poderia ter tratado seus transtornos e não o fez não pode ser culpado:
nossa sociedade sofre de psicofobia, que é o preconceito contra a doença
mental. A gente tem que entender que é difícil para a pessoa aceitar o
transtorno. O que podemos fazer como sociedade é combater o tabu e o
preconceito. A primeira coisa seria mostrar que é comum, até banal, ter um
transtorno. Não tem que ter vergonha. O suicida se sente envergonhado do que
passa. Acha que tem que ser feliz e tem vergonha de procurar ajuda.
Você já o perdoou?
Não tive que perdoá-lo porque nunca o condenei. Entendo
que fez o que fez porque estava em um estado desesperador. E que na cabeça
dele, a morte era a única saída. Nunca tive raiva. Minha escolha foi a de
continuar vivendo e buscando a felicidade. Uma semana depois da sua morte eu
estava no meu grupo de meditação. Aos prantos, mas presente.
O suicídio é previsível?
Uma das coisas terríveis que a gente ouve é: “mas você
não viu o que estava acontecendo?”. Quem diz isso a alguém no momento do luto
não tem noção da gravidade das suas palavras. O suicídio pode ser prevenido,
mas não pode ser previsto. O suicídio é uma ideia planejada. A pessoa pensou
nisso mais de uma vez e não apenas no momento daquele ato. Quem tenta uma vez,
tem 50% de chance de tentar de novo. E ser bem-sucedido.
Como os familiares devem agir nesse caso?
É muito difícil. Essas famílias que tentam proteger um
potencial suicida de si mesmo ficam esgotadas. A maior parte delas, sem
assistência, tem que se organizar em rodízios. É muito sacrificado. Para essas
famílias eu diria que há um limite para nos sentirmos responsáveis pela vida do
outro.
Qual é o peso do estigma para a família?
Se falar sobre o luto é tabu, o luto por suicídio de
alguém próximo é maior ainda. Por muito tempo eu imaginava que, onde quer que
eu fosse as pessoas estariam me olhando e pensando: “ela é aquela que o marido
se matou…” O que se pensa, geralmente, é que uma família em que acontece um
suicídio não pode ser normal. É compreensível que se pense assim. Para nós que
temos uma pulsão de vida, é difícil entender a pulsão de morte. Por outro lado,
o drama acentua a compaixão. Recebi muito carinho e conforto por parte da minha
família e dos amigos mais queridos. Alguns não conseguem lidar com isso e se
afastam. É compreensível.
No exato dia da morte, como havia aquela festa na escola
sobre a qual falamos na nossa última conversa, vi, de repente minha casa cheia
de pais de colegas das crianças, as pessoas me cercando de cuidado, trazendo
comida, oferecendo-se para levá-los para passear. Tive uma rede de grande
proteção e solidariedade.
Como foi retomar a vida?
Minha família foi fundamental. Meus pais, maravilhosos.
Minha mãe me estimulava muito a voltar a sair, a reencontrar os amigos e me
divertir. Confesso que nas primeiras vezes em que saí, quase um ano depois,
achava que tinha sempre alguém me olhando e me julgando: ‘Olha aí a viúva
alegre”. Mesmo assim, eu me esforcei para seguir em frente. As pessoas me
ligavam queriam saber como eu estava mas nunca que convidavam pra nada,
constrangidas. Eu tive que pedir que me chamassem. Mesmo que eu não quisesse e
não fosse, eu queria ser chamada. Lembro do meu constrangimento de pegar o
elevador à noite, arrumada e com um vinho na mão… Mas concluí que não podia me
guiar pelo que eu achava que os outros iriam pensar, mas pelo que eu mesma
pensava.
Você gosta de falar do seu marido?
Eu adoro falar sobre o Marden. No primeiro ano eu falava
dele e também com ele o tempo todo. Olhava para nossa foto ao lado da cama e
dizia: “Ei Salabim (eu o chamava assim e ele a mim), veja a situação em que
você me deixou”. Falava e chorava tanto que dormia e acordava chorando. Meus
filhos me diziam de manhã: “mãe, você ainda está chorando?”. E eu respondia:
‘Não filhos, eu dormi e voltei a chorar agora” (risos).
Como você, enlutada, ajuda as crianças com o luto pelo pai?
O budismo me ajuda. Vivemos o presente e eu os ensino a
não pensar em como poderia ter sido diferente. Aqui em casa não tem “e se?”. As
coisas são o que são e temos que lidar com o que estamos vivendo
Como você decidiu estudar o tema do suicídio?
Quando meu marido morreu, eu ainda trabalhava na empresa
da minha família, apesar de ser psicóloga há 20 anos e nunca ter deixado de
atender no consultório. Mas naquele momento eu senti que era importante me
desligar do trabalho na empresa e fui estudar tanatologia e suicídio. Depois
segui com os estudos e me especializei em cuidados paliativos. Desde então
venho tratando do tema e participando de congressos, cursos e dado palestras.
Atendo muitos enlutados e tem sido muito bom, para mim e meus pacientes, eu estar
nesse lugar com o meu próprio luto. O luto é individual e único, mas posso
oferecer a escuta e mostrar que é possível seguir a vida.
O que você gostaria de dizer para um enlutado que perdeu
alguém por suicídio?
Primeiro, duas coisas tem que ficar claras: o suicídio é
conseqüência de uma ou mais doenças mentais. O suicida não é um covarde e se
matar não é um ato de heroísmo. É muito importante entender que a pessoa não se
matou. A doença o matou. Em segundo lugar, não devemos culpar o suicida por sua
decisão. Ele agiu com as informações de que dispunha naquele momento. Ele não
pede ajuda e disfarça muito bem sua condição. Fez o que podia.
É possível encontrar uma razão?
A família não deve procurar o por quê. Não existe essa
resposta.
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