Os
intensos debates contemporâneos sobre sexo e gênero
sugerem que parece haver
mais dúvidas
do que certezas sobre o tema.
E
há quem acredite que é hora de acabar com essas definições — ou, pelo menos, da
forma como as usamos atualmente.
Uma
das polêmicas mais recentes surgiu há alguns meses, quando declarações de
algumas feministas, vistas como discriminatórias em relação a transexuais,
abriram uma caixa de Pandora na qual diferentes grupos trocam acusações e
parecem relutantes em ouvirem uns aos outros.
A
controvérsia envolve o movimento feminista, o movimento LGBTQI+ (sigla internacional
para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais, queers e mais),
teóricos da cultura queer (termo associado aos que não se encaixam em padrões
heteronormativos) e políticos de diferentes tendências.
Mas
vamos por partes. A que se referem as palavras sexo e gênero?
Sexo biológico ou designado
No
senso comum, o sexo é um rótulo que o médico nos dá ao nascer, de acordo com
uma série de fatores fisiológicos como a genitália, os hormônios e os
cromossomos que carregamos.
A
maioria das pessoas recebe o gênero masculino ou feminino, e é isso que geralmente
aparece na certidão de nascimento.
Os
supostos papéis de gênero muitas vezes são incutidos desde a infância.
Os
fatores que determinam o nosso sexo designado no nascimento começam logo após a
fertilização:
Cada
espermatozoide tem um cromossomo X ou Y. Todos os óvulos têm um cromossomo X.
Quando o espermatozoide fertiliza um óvulo, seu cromossomo X ou Y se combina
com o cromossomo X do óvulo.
Uma
pessoa com cromossomos XX geralmente tem órgãos sexuais e reprodutivos
femininos e, portanto, geralmente é designada como do sexo feminino.
Uma
pessoa com cromossomos XY geralmente tem órgãos sexuais e reprodutivos
masculinos e, portanto, geralmente é designada como do sexo masculino.
A
atribuição de um sexo biológico pode ou não coincidir com a forma como a pessoa
se sente ou se identifica.
Isso
não exclui outras combinações de cromossomos, hormônios e órgãos que podem
levar uma pessoa a se considerada intersexual.
Nestes
casos, o mais comum é que os pais ou responsáveis decidam criar o bebê como
menino ou menina, embora haja cada vez mais países nos quais não é mais
necessário determinar o sexo — feminino ou masculino — na certidão de
nascimento.
Alemanha,
Holanda, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e alguns
lugares no México e na Argentina permitem que haja um sexo distinto ou
não-identificado.
Gênero e identidade
O
gênero é ainda mais complexo do que o sexo.
Ele
inclui papéis e expectativas que a sociedade tem sobre comportamentos,
pensamentos e características que acompanham o sexo atribuído a uma pessoa.
Por
exemplo, ideias sobre a maneira que alguns esperam que homens e mulheres se
comportem, se vistam e se comuniquem ajudam a construir a concepção de gênero.
Geralmente
também é masculino ou feminino, mas em vez de se referir a partes do corpo,
refere-se à maneira como se espera que devamos agir de acordo com o sexo.
O
sexo atribuído e a identidade de gênero de algumas pessoas são praticamente os
mesmos ou estão alinhados. Estas pessoas são conhecidas como pessoas cisgênero.
Roupas,
aparência e comportamentos podem ser caminhos para se expressar a identidade de
gênero.
Outras
pessoas sentem que o sexo que lhes foi atribuído no nascimento é diferente da
sua identidade de gênero. Elas são chamados de transexuais ou transgêneros e
nem todas vivem seus processos da mesma forma.
Há
também aqueles não se identificam com sexo ou gênero. Essas pessoas podem
escolher rótulos como "genderqueer", não binárias ou de gênero
fluido.
Mas qual é a discussão?
No
centro do debate atual está a batalha para estabelecer quem determina o gênero
e quais os efeitos que isso tem em termos jurídicos e políticos.
Na
Espanha, por exemplo, um projeto de lei trans que contempla a autodeterminação
de gênero está sendo discutido por políticos.
A
proposta defende que qualquer pessoa possa estabelecer seu gênero e que isso
seja legalmente reconhecido sem a necessidade de passar por processos médicos
ou psicológicos.
Certos
grupos feministas, incluindo algumas mulheres com cargos no atual governo
espanhol, dizem temer que este tipo de legislação priorize o gênero em
detrimento do sexo designado e desconfigure a categoria das mulheres.
Para
as críticas, a medida traria efeitos negativos em políticas especificamente
dirigidas a proteger direitos femininos.
Por
outro lado, os defensores dessa lei, que já existe em nível regional,
argumentam que ela pretende incluir e garantir direitos para todas, sem a
intenção de apagar ninguém.
A
escritora JK Rowling, autora de Harry Potter, esteve no centro de um debate entre grupos ligados ao
feminismo e à comunidade trans.
No
Reino Unido, uma discussão semelhante levou a uma briga entre feministas
encabeçadas pela autora de Harry Potter, JK Rowling, e parte do movimento
transsexual que as acusou de serem intolerantes e excludentes.
Comentando
um texto que falava de "pessoas menstruadas", Rowling afirmou:
"Se o sexo biológico não é real, a realidade vivida pelas mulheres
globalmente acaba sendo apagada. Eu sei e amo pessoas trans, mas apagar o
conceito de sexo biológico elimina a capacidade de muitas pessoas de analisar o
significado de suas vidas. Dizer a verdade não é discurso de ódio."
Sua
afirmação foi duramente criticada e rotulada como transfóbica.
Uma preocupação 'recente'
O
gênero como construção social é um conceito difundido, mas relativamente
recente, segundo Maria Trumpler, diretora do departamento LGBTQ da Universidade
de Yale (EUA) e professora de estudos sobre mulheres, gênero e sexualidade.
"A
crença de que as pessoas são homens ou mulheres tem apenas 200 ou 300 anos. Eu
diria que surgiu na Europa no século 18, quando os governos começaram a querer
classificar as pessoas", disse Trumpler à BBC News Mundo, o serviço em
língua espanhola da BBC.
Os
sentimentos sobre a identidade de gênero podem surgir cedo: entre os 2 ou 3
anos
"As
pessoas que não se enquadravam claramente nas categorias de homem ou mulher
compareciam perante o juiz, passavam por exames médicos e eram questionadas se
queriam se casar com um homem ou uma mulher. Dependendo da resposta, lhes era
atribuído um gênero", continuou.
Trumpler
diz que acompanha com fascínio a variedade de identidades e gêneros com que
seus alunos com idades entre 18 e 25 anos se apresenta na faculdade.
"Eles
são jovens de mente muito aberta que se questionam sobre o significa ter traços
femininos ou masculinos, ou quem foi que os rotulou de determinada maneira. ? É
um diálogo às vezes doloroso, mas também é alegre e criativo. Eu acho que é
totalmente fascinante e adoro a energia que eles trazem", diz a
professora.
Desafiando conceitos
Diante
disso, há vozes que se perguntam se os termos sexo e gênero, como os
conhecemos, ainda são válidos.
"O
problema básico é que temos um pensamento binário", diz Coral Herrera,
escritora e doutora em Humanidades e Comunicação pela Universidade Carlos III
de Madrid, na Espanha.
O
gênero está dando lugar a múltiplas reflexões
"Eu
rompi há muito tempo com aquele binômio cultura-natureza (gênero-sexo) porque
todas as oposições que se colocam entre termos opostos como estes não nos
permitem ver a complexidade da realidade", ela afirma.
"Existem
culturas que pensam diferente. As culturas orientais unem o yin e o yang, o
masculino e o feminino, e também dizem que a doença e a morte fazem parte da
vida, e não são o oposto da vida", diz Herrera, que se define como uma
feminista radical abolicionista trans-inclusiva.
Herrera
sublinha esta última palavra para que não seja confundida com o termo feminista
radical trans-excludente (TERF), que ganhou grande relevância neste debate
sobre sexo e gênero.
São
cada vez mais comuns os locais com banheiros unissex.
Nesta
era de pensamento complexo e de pensamento em rede, não faz sentido ficar preso
a uma discussão de polos opostos. O que isso significa? Acho que sexo é uma
questão biológica, mas também é uma questão social e cultural, porque o ser
humano não pode ser considerado nem apenas um animal, nem apenas um ser
cultural."
"Se
ficarmos presos nessa contradição de cultura x natureza ou sexo x identidade de
gênero, não avançaremos", enfatiza.
Sexo é uma construção?
Mas
se sexo é algo fisiológico, como pode ser também uma questão social e cultural,
como aponta Coral Herrera?
Este
ponto é defendido pela teoria queer, corrente que surgiu no final dos anos 1980
nos Estados Unidos e que se situa na interseção entre o feminismo e o movimento
LGBTQ.
Sua
representante mais conhecida é a filósofa americana Judith Butler.
A
partir dessa teoria, diz-se que o sexo é uma construção, o que não significa
que ele seja algo falso ou artificial.
"O
queer não quer dizer que não existem características sexuais biológicas, mas
que organizar essas características do corpo em duas categorias únicas é uma
construção sóciopolítica", escreve a antropóloga Nuria Alabao no site
ctxt.es.
Mau uso da palavra gênero
Para
o jornalista Ilya Topper, usar a palavra gênero para descrever
"estereótipos associados ao sexo" é um erro, um neologismo derivado
do inglês.
"'Gênero'
tem vários significados em espanhol [como no português]: pode descrever uma
categoria de animais (o gênero bovino), pode ser simplesmente sinônimo de
'mercadoria' (gênero alimentício) e pode ser usado para categorias gramaticais.
Mas nunca significa 'sexo'", afirma.
Para
alguns setores do feminismo, as mulheres são atacadas por seu sexo, não por seu
gênero.
Para
ele, o uso da palavra gênero em expressões como "violência de
gênero", "enfoque de gênero" e "identidade de gênero"
é uma armadilha em que o feminismo caiu nos anos 1990.
"O
patriarcado oprime as mulheres por causa de seu sexo, não por causa de seu gênero",
denuncia Topper.
O
sociólogo e sexólogo Erick Pescador, especialista em gênero, masculinidades e
igualdade, discorda.
"Em
nossa cultura, sexo e gênero andam juntos e as mulheres são discriminadas por
causa da instituição do gênero", disse ele à BBC Mundo.
"Quando
uma mulher não é discriminada? Quando ela é 'masculinizada', como por exemplo
acontece com a [chanceler alemã] Angela Merkel, que representa exatamente o que
o patriarcado deseja em termos de sua gestão política e econômica."
Evolução da linguagem
Podemos
continuar a usar os mesmos conceitos?
Pescador
afirma que "o gênero ainda é atual" e afirma que "borrar as
definições de gênero, a ponto que as estruturas de diferenciação cultural
desapareçam, deve ser o fim, e não o princípio".
Para
Coral Herrera, a categoria mulher também não deve ser apagada.
"É
totalmente necessária porque é uma categoria de luta e não pode se diluir até
que consigamos acabar com a opressão, a discriminação e a violência",
explica.
O
debate sobre qual linguagem usar é parte do recente confronto que se tornou
particularmente violento nas redes sociais entre alguns setores do feminismo e
do movimento trans.
"Acho
que a guerra se deve à forma como nos comunicamos", ressalta Herrera.
"Não há espaços seguros, livres de violência para falar sobre isso.
Percebo violência dos dois lados, mas acho isso que vem de uma dor e uma raiva
muito fortes."
Para
Pescador, esse confronto não deveria servir como distração "dos
verdadeiros problemas".
"Se
o foco ficar na luta entre feministas e trans, o feminismo se enfraquece e o
patriarcado ganha", diz ele.
"A
verdadeira luta é desmontar a estrutura que sustenta as desigualdades entre os
sexos."
Quais
são esses sexos? O caminho para se chegar a uma resposta consensual promete ser
longo e duro, mas também interessante e enriquecedor.
Este artigo faz parte do Hay
Festival Querétaro digital, um encontro de escritores e pensadores que acontece
de 2 a 7 de setembro de 2020.
Por Beatriz Díez - BBC
Um livro interessante e despretensioso.
Uma leitura deliciosa e emocionante.
A Casa Encantada
A coisa ficou tão complicada que eu me abstenho de procurar entender. Na minha idade posso me dar esse direito.
ResponderExcluirA coisa ficou tão complicada que eu me abstenho de procurar entender. Na minha idade posso me dar esse direito.
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