CAETANO VELOSO - Interessante

O espaço para comments na internet é, em geral, 
um paraíso para os que têm parafusos a menos

Gostaria de ter tido tempo para refletir antes de escrever. Mas aconteceu o contrário. Trabalhos dobrados se sobrepõem à montanha de assuntos de que eu queria poder tratar aqui hoje. Então vai tudo sem reflexão mesmo (não que isso seja uma novidade nesta notoriamente caótica coluna). Claro que vi um bom número de tweets ofensivos à minha pessoa por causa da foto com máscara tipo Black Bloc. E posts longos de blogueiros variados. Não vou evitar comentar: resumo dizendo que tudo parece maluquice pura. E lembrando que Paulo Francis dizia que quem escreve cartas para a redação é doido: o espaço para comments na internet é, em geral, um paraíso para os que têm parafusos a menos. Mas coisas mais interessantes do que eu mesmo se impõem. Um comentário de acompanhante de famoso blog direitista (o do Reinaldo Azevedo, que, não sei por que, se alegra em fazer sucesso com aquele tipo de plateia) protesta contra a manobra “esquerdista” da TV Globo ao pôr no ar, no “Fantástico”, reportagem sobre a espionagem americana no Brasil. Para ele, a TV Globo é um veículo da conspiração comunista internacional. O que, para nós brasileiros, soa mais estapafúrdio do que as reiteradas afirmações de Olavo de Carvalho sobre o “New York Times”, que ele retrata como uma espécie de braço do movimento comunista. A Globo, que os blogs de esquerda — e muitos manifestantes de rua — chamam de líder da mídia golpista, da trama que o venerável Mino Carta, dono da “Veja” do Lula, denuncia semanalmente. (O fato é que compro sempre uma “Veja” e uma “Carta Capital” para ler no avião — além da “The Economist” — quando tenho de cantar “Abraçaço” em distantes cidades brasileiras ou não brasileiras: preciso saber o que dizem os chamados dois lados para poder me manter centrista aqui.)

Porém, mais do que essas loucuras propriamente brasileiras, me impressionou um documentário russo que vi na internet, prefaciado por um nosso compatriota que se diz comunista. Para um velho como eu, parecia um pesadelo que se passasse na Guerra Fria. É tudo tão louco que não sei se o link para tal vídeo me foi enviado por alguém que foi comigo e Sidney Waismann falar com Beltrame ou se foi sugerido por outro comentarista do Azevedo (perdi muitos e-mails dos diálogos com a turma boa que foi à Central — e procurar no blog da “Veja” o comment em que talvez estivesse a sugestão me tomaria horas que não tenho). Mas dei busca no YouTube e achei: trata-se do site chamado “comunista” (www.comunista@spruz.com), e o documentário é da TV russa. Soldados do exército regular da Síria aparecem dançando passos folclóricos da região, empurrando crianças em balanços sob árvores, namorando à beira de riachos límpidos. Depoimentos de cidadãos civis sírios dão conta de que o país era, até a entrada dos rebeldes, um exemplo de paz e tolerância, sem nenhum traço de tensão entre grupos religiosos, um ambiente de doce camaradagem. Os rebeldes, segundo a versão da TV russa, não têm nada que se pareça com a Primavera Árabe, nem mesmo com a Síria, sendo todos mercenários a soldo do Qatar e dos EUA. O prefaciador brasileiro diz que essa é uma visão mais realista da guerra civil síria, que a imprensa ocidental só diz que os rebeldes lutam pela democracia. Bem, eu leio muita coisa da imprensa ocidental e, da “Economist” à “Carta de Mino”, passando pelo “Globo” e a “Folha”, nunca fiquei com a imagem de que os levantes sírios — por mais simpáticos que parecessem logo ao eclodirem — fossem harmônicos e tivessem a democracia como motivação única (ou mesmo principal) e como meta indisputável. Mas o crítico da imprensa ocidental que fala no vídeo não se peja de reafirmar o que diz o documentário pós-soviético: que os rebeldes sírios são homogeneamente maus e motivados apenas pelo dinheiro que recebem de fora.

É incrível que um documentário tão demagógico em seu tom quanto os filmes de propaganda do período stalinista seja anunciado como revelador da verdade que a imprensa “livre” oculta.

Hoje (sexta) acordei para as notícias de que Putin propõe que Assad entregue as armas aquímicas (ué, mas não disseram que não havia e que tudo era invenção dos americanos, como no caso do Iraque?) e que o supermandante sírio responde com o pedido de prazo de um mês, o que o governo americano não aceita.

Enquanto isso, 5x5 no STF, sentimentos cruzados no petismo e no antipetismo. Se houver ainda manifestações, ou seja, se nós da classe média (que, ao contrário de Marilena, eu respeito e amo) não desistirmos de gritar por medo dos BBs de Cora, o que será dito sobre Barroso e Barbosa? Não resta dúvida de que vivemos um tempo preocupantemente interessante. Talvez demais para o meu gosto.

JOÃO UBALDO RIBEIRO - Embargando cá, embargando lá

Não importa o que se ache da decisão da quarta passada, 
ela confirma que nossa estrutura judiciária e processual é pervertida

Não tenho completa certeza, mas acredito que a maioria de nós ainda não se esqueceu do julgamento do mensalão, um processo iniciado há aproximadamente dez anos que vinha dando muito o que falar e, superado apenas pela derrota do Botafogo e pelo início da recuperação do São Paulo, deve ter sido o assunto mais comentado na semana passada, pois não é que Seedorf perdeu um pênalti crucial e Murici Ramalho volta a mostrar sua estrela? Sei que alguns de vocês, os que não se esqueceram, pensam que faço chiste, mas não é verdade, pois há também o vastíssimo contingente de nossos patrícios que não entende nada do que está acontecendo. 

Uma vez ou outra, lá em Itaparica, à porta de sua casa, o hoje finado seu Manuel Joaquim esperava sorridente minha passagem, para me cumprimentar e revelar seu orgulho conterrâneo por ter ouvido falarem em meu nome no rádio, um menino que ele vira nascer, parecia que tinha sido ontem. Ah, muito obrigado, e o que foi que disseram, seu Manuel Joaquim? Bom, isso ele não sabia informar direito, mas o homem tinha falado bastante tempo em mim, uma coisa muito especial mesmo, ele estava seguro de que me tinham elogiado.

Entre os frequentadores do Bar de Espanha, a situação não é muito diversa. Logo depois da decisão do Supremo, Zecamunista deslocou-se para local ignorado, na companhia de duas correligionárias, para realizar um tal retiro dialético-espiritual, em que, segundo ele, uma companheira faz a tese, a outra faz a antítese e ele faz a síntese das duas, não conheço bem os detalhes. 

Mas, num esforço de reportagem que envolveu telefonemas para, entre outros, Xepa, Jacob Branco e Toinho Sabacu, pude ter uma ideia de como está a nossa atual conjuntura. Xepa recusou-se a fazer comentários, porque a aposentadoria dele finalmente está para sair e ele não é besta de se arriscar a falar qualquer coisa que possa melindrar os homens, não se joga fora assim uma vida de trabalho. Jacob Branco fez um discurso inflamado, em que afirmou que as belas palavras usadas para explicar o processo “são apenas bolodório vaselinório para o enfiatório de mais um sesquipedal supositório no sofrido subilatório dos simplórios”, mas não se estendeu na costumeira eloquência, pois ainda está lapidando o discurso, cuja versão definitiva será pronunciada na porta da Câmara de Vereadores, em data ainda não marcada. E Sabacu, como já se esperava, deu uma resposta filosófica e criou mais um neologismo.

— Eu não tive decepção nenhuma — disse ele. — Só quem pode ter decepção é quem primeiro teve a cepção. Como eu nunca tive cepção nenhuma quanto a esse pessoal, não ocorreu decepção. A única decepção que eu sofro às vezes é com o Flamengo, mas isso porque já tenho a cepção rubro-negra desde o tempo de Servílio, Dequinha e Jordan, não vai se comparar a esse povo. Minha posição continua eles lá e eu cá. Ficando eles lá e eu cá, já dá para botar as mãos para o céu todo dia, Deus é mais.

Pensei no assunto e cheguei à conclusão de que também não tinha muita cepção, de forma que só me decepcionei no primeiro minuto e logo caí de volta na realidade. Não importa o que se ache da decisão da quarta passada, ela confirma que nossa estrutura judiciária e processual é pervertida e que não é mesmo de nossa tradição levar a julgamento e muito menos condenar os poderosos e bem situados. Todo o sistema reage automaticamente, como se estivesse tendo uma intolerância alimentar. Ele não foi feito para isso, foi feito para privilegiar mesmo, para dar vantagem a quem tem influência, para só punir os pequenos, para permitir o prolongamento indecente das demandas, para tudo o que a gente tem visto — do que o julgamento do mensalão é mais uma manifestação e talvez sua única originalidade esteja em que, pela primeira vez, tantos figurões foram alvo de um processo tão rumoroso. 

Na hora em que se busca usar todo esse complexo sistema com o objetivo de obter algo para o qual ele não foi construído, dá nisso, numa justiça que se engasga, em permanente loop e decisões ioiôs, que vão e voltam infinitamente, entre óbvias e deslavadas manobras meramente protelatórias e chicanas que não cessam de produzir-se, num festim processual extravagante e descomedido.

É possível que evoluamos e, em passos relutantes e pouco decididos, consigamos deixar esse estado de coisas, mas é também possível que o sistema se reconfigure, para preservar a proteção aos que lhe são caros e para uso dos quais ele foi montado e aprimorado, numa história que se desenrola há séculos. Uma das reações do sistema, por exemplo, pode ser a criação dos embargos rotacionais, os quais, para usar o latinzinho adornativo de costume, serão chamados de embargos propter rotationem. 

Esses poderão ser apresentados pelos condenados em última instância, se, antes da execução da sentença, qualquer juiz vier a ser substituído, por qualquer motivo. Num passo adiante, poderemos instituir o embargo reviratório, que derroga todas as condenações, se mudarem quatro ministros, no mesmo prazo que o exemplo anterior. E, para dar um toque mais democrático, teremos o embargo divergente, que é quando o condenado, através de seu advogado, comunica ao tribunal que diverge frontalmente da sentença, ao fim do que recebe um prazo, com efeito suspensivo, de seis meses, prorrogáveis por mais seis, para coletar assinaturas em apoio da divergência. Claro que, para não vulgarizar a justiça, caberá recurso também dessa decisão, porque é para não resolver nada mesmo, a ideia é esta. 

Durante uma das últimas sessões do Supremo, um dos ministros comentou que, desse jeito, a justiça não fecha. Vejam como a percepção é afetada pela posição do observador. Do lado de cá, a impressão que muitas vezes se tem é de que ela já fechou há muito tempo.

ADRIANA CALCANHOTTO - Conversa fiada

Estive em minha terra natal para participar da 
vigésima edição do Porto Alegre Em Cena

Estive em minha terra natal para participar da vigésima edição do Porto Alegre Em Cena, o festival de teatro da cidade, um dos melhores do mundo, capitaneado pelo muito guerreiro Luciano Alabarse, que faz com que o de mais contundente no teatro feito sobre o planeta passe uma vez por ano pelos palcos portoalegrenses. Passei o som no teatro no final da tarde, durante uma hora e meia, e à noite fiz os shows, nos dois dias. Dei algumas entrevistas por e-mail, como todos os dias. Vi minha família e meus amigos.

Na manhã seguinte ao show final, voei para São Paulo, onde um carro me aguardava no aeroporto para irmos à cidade de Monteiro Lobato. Estrada linda. Estava indo participar do quarto Festival Literário de Monteiro Lobato, a cidade, que antes chamava-se Buquira. Antes de Monteiro Lobato, o escritor, nascer e criar sua obra, num sítio que pertencia à família de seus avós, e que hoje chama-se Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Dizem na cidade que o menino José Bento Renato Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, mas que o escritor Monteiro Lobato nasceu em Monteiro Lobato, a antiga Buquira. Ninguém é de Monteiro Lobato porque não há maternidade, os partos são feitos nas cidades próximas e logo os “lobatenses” recém-nascidos estão em casa. Só quem nasceu em Monteiro Lobato foi o escritor Monteiro Lobato, achei lindo isso.

De manhã passei uma horinha cavalgando Passaporte, um Manga Larga gente boa com quem conversei durante toda a trilha. Céu transparente, montanhas soberbas, silêncio de cascos. Me comovi ao ver a linda foto da verdadeira Tia Anastáscia com um dos filhos do escritor Lobato no colo. Cantei com as crianças a plenos pulmões numa tarde mágica onde o mais bonito mesmo foi ouvi-las lendo os poemas para a plateia. Do evento, conduzida até o carro por Emília e Visconde em pessoa, peguei a estrada para o aeroporto, e meia-noite já estava em casa, no Rio.

Dois dias de folga hibernada a conselho médico e a quarta-feira hipnotizada pelo decano do Supremo Tribunal Federal solidamente argumentando, por duas horas, que cumprir a lei é melhor que não cumprir. Não consegui pensar em mais nada depois que não fosse o destino: o do direito, o do julgamento, o do juiz, o da democracia. Nas ironias do destino, afinal. Quinta-feira, estive envolvida com a rejeição de minha ficha de adesão à Rede Sustentabilidade, negada porque não há minha assinatura nos cadernos das últimas eleições. Claro que não há, não votei. Só com a identidade, sem saber minha zona e seção eleitorais, não me foi permitido justificar por estar em trânsito, e não insisti porque não queria dar meu voto a ninguém, apenas justificá-lo.

Voltei ao Rio, paguei a multa e obtive a certidão “Quite com a Justiça Eleitoral”. Certidão obtida exatamente porque não há minha assinatura no caderno da última eleição, não é isso? Somente obtendo a certidão posso viajar para o exterior, por exemplo, mas ela não serve para que eu apoie um projeto político. Posso sair do país e não posso assinar uma ficha de adesão a uma proposta política porque minha assinatura não consta dos cadernos? Como estamos atrasados. Peço encarecidamente à Justiça Eleitoral que nós, as 95 mil pessoas que estão nessa mesmíssima situação, tenhamos nossas rejeições revistas, em nome da democracia. Aos compadres peço desculpas pela elipse, mas somos 95 mil.

Fiz a mala para Roma. Na manhã da sexta-feira, gravei depoimento para a Rede Sustentabilidade por conta do imbróglio da ficha de adesão. Embarque para Roma. Chegada a Roma às 17h, para almoçar ou jantar, dependendo do ponto de vista. Cair desmaiada logo depois. De manhã algumas entrevistas, à tarde passar o som, agora sim, escutem, na incrível acústica de uma das melhores salas de música do mundo, enquanto Roma está lá fora. Comer uma maçã e fazer o show, finalmente.

A esta altura, os compadres mais atentos já entenderam que tudo o que não fiz durante a semana foi parar para escrever a coluna de hoje. Hoje, domingo, quando estou em Roma para cantar à noite. Não tenho como estar na contracapa do Segundo Caderno ao mesmo tempo, que eu sou só uma só. Por isso, compadres, desculpas sinceras, mas a crônica de hoje só na crônica que vem.

A Casa Encantada & À Frente, O Verso.

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