Por uma teoria do estado de exceção na linguagem
No atual estágio histórico em que pensamento e moral compõem dois lados de uma única banda torna-se impossível ler, dizer ou ouvir a palavra vida sem cuidado filosófico – pelo menos para quem deseja ser justo com o conhecimento preservando, pela busca, a possibilidade de sua realização. Não é possível alegar ingenuidade sobre a questão quando o termo vida foi capturado por toda sorte de ideologias, o que exige que sobre ele se opere uma desmontagem crítica. A disputa sobre o termo vida corresponde na ordem do discurso ao que para além do discurso se dá com a própria vida que, sob a palavra, é ocultada. Não querendo reeditar apressadamente nenhum nominalismo como crítica do discurso, é necessário hoje prestar atenção se já não estamos vivendo uma nova era nominalista em que a posse do nome define a posse sobre a possível verdade das coisas. Quem sabe o que é a vida como uma verdade para além de todas as possíveis definições? Esta verdade talvez não exista, mas aquele que a controlar saberá do seu império no tempo. Por isso, muitas disputas conceituais hoje, na verdade são disputas políticas. Saber é poder mais uma vez. Hoje, porém, poder, mais que nunca, é dizer. Quem não souber das disputas ideológicas corre o risco de parar de pensar por conta própria ao simplesmente aderir a falas prontas facilmente encontráveis no mercado das crenças.
A vida, portanto, precisa hoje, ser analisada como uma questão de discurso. A captura da palavra vida - sabem os que manipulam o discurso ou dele se valem num contexto comunicativo – define a intenção da captura da própria vida. Da vida enquanto é capturada pela palavra como ordem simbólica que impera sobre o real. A relação entre as palavras e as coisas ainda está na ordem do dia. Em outras palavras, quem puder definir vida, saber-se-á seu dono e senhor, assim dos poderes a ela associados. A tarefa hoje é reler a palavra buscando entender em que medida ela se tornou lugar da verdade sobre a qual sempre se disputa no discurso.
O poder do discurso, entendido como fala pré-estabelecida em nome da verdade, advém de seu ocultamento como tal. Em outras palavras, fala-se da vida como se estivesse a falar da própria coisa, e não de uma palavra que, ela mesma, é já conceito e, como tal, sempre elaborado, re-elaborável e passível de discussão. A palavra, por mais que se agregue à coisa, que se diga em nome de algo, não é a própria coisa à qual alude ainda que as próprias coisas precisem dela para chegar à cultura. Por isso, nos dias atuais, enganamo-nos ao discutir a vida – este amplo e inespecífico conceito que vai da natureza à cultura, da mera vida às suas formas e que como idéia é aquilo dentro do que estamos. Disputamos quem vence no contexto da crença para saber quem deterá o poder dos que podem crer (seja no que for que creiam, na ciência ou na religião). A pergunta a ser feita neste momento histórico é – para além do sexo dos anjos, da alma das mulheres ou da “vida” dos embriões – se poderíamos discutir o conceito de vida sabendo que se trata apenas de um conceito e, assim, ultrapassar a retórica e o desejo de persuadir e libertar a verdade à qual apenas uma disputa honesta de conceitos poderia nos levar. A questão seria precisar em que sentido a palavra é usada a cada vez que, como uma bandeira, é erguida em nome de guerra ou de paz.
Por isso, é preciso falar com cuidado e pressupor o próprio ato de fala como algo que merece análise. Portanto, usar a palavra vida supondo a ingenuidade de quem não imagina o seu lugar entre outros tantos conceitos é má-fé. Não é possível participar de uma discussão sem demonstrar o pressuposto a partir do qual se fala. Ninguém pode pensar filosoficamente, ou seja, em sentido analítico e crítico, ou dialético e crítico, sem definir com máxima exatidão o uso do termo que, historicamente, se constrói como um conceito dos mais complexos e sobre o qual as disputas mais acirradas se travam. Supor esta ingenuidade ou falar a partir dela é sempre a primeira estratégia de quem, cinicamente, não quer se enfrentar com argumentos, de quem quer afirmar suas idéias pondo-se como inimputável numa disputa. Quando digo a outrem que sei o que é vida enquanto ele não sabe, se afirmo que detenho a verdade sobre um conceito enquanto ele não, estou falsificando o meu próprio lugar como sujeito de discurso, que se afirma a partir de pressupostos culturais e formais que organizam o discurso. Se afirmo que sei imediatamente o que é a verdade, já me coloco como seu possuidor e exijo uma postura de atenção. A mesma atenção que me esquivo de ter com a possível postura de outrem. A melhor arma numa disputa em que algum nível retórico está em jogo nem sempre é a autoridade, mas a ignorância. Esperto é quem sabe usar a postura do burro como plano de argumento.
A palavra “vida” encontra-se neste lugar especial na atualidade, lugar que, a qualquer momento, é ocupado por qualquer palavra com a qual se deseje entabular a verdade. A questão hoje apenas pode ser refletida por uma teoria do “Estado de exceção da linguagem” por meio da qual se investigue o modo como se pretende, na ordem do discurso, se capturar a verdade e decidir sobre ela por meio da captura de uma palavra. O poder do discurso situa-se na palavra tomada como arma de decisão. Ao sacralizar a palavra “vida”, afirmando que falar dela ou contra ela é uma blasfêmia ou heresia, espera-se sacralizar a própria vida à qual a palavra se refere como se, por meio da palavra, já se tivesse decidido sobre a coisa.
Apenas uma teoria organizada sob a tese de que a linguagem, como parte de toda estrutura política, está sitiada por uma ordem que oculta seu próprio funcionamento, que a linguagem, como o corpo está “capturada fora”, incluída e excluída como no mesmo mecanismo do estado de exceção, é que se compreenderá o que se diz e o que se quer com isso ao pronunciar a palavra vida.
Ela está na ordem que faz do discurso a verdade. Duas posturas são visíveis nos dias de hoje. A daqueles que ainda enfrentam o potencial conceitual da palavra, o que se pode dizer por meio dela, ou o que ela pode significar em relação ao real. Tratam da palavra vida como uma palavra junto de outras. Compreendem-na como inserida na ordem do discurso à qual é preciso sempre prestar atenção. Por outro lado, há aqueles que falam dela como uma exceção.