O presidente Lula tinha acabado de discursar quando recebi a notícia de minha morte. Eu estava na cerimônia de inauguração do Instituto Moreira Salles e vi Marcos Sá Corrêa vindo em minha direção com o cabelo molhado de quem saiu do banho às pressas e a cara de quem estava vendo fantasma. De fato, eram as duas coisas. Viera correndo de casa, ali perto, para me avisar que infelizmente eu tinha morrido.
Acho que cheguei a esboçar um ar compungido ao ouvir o relato e devo ter dito que o falecido era um cara legal.
Acho que cheguei a esboçar um ar compungido ao ouvir o relato e devo ter dito que o falecido era um cara legal.
O boato fora divulgado na Internet, on-line, pela Agência Estado, que se baseara no telefonema que um repórter deu para um antigo número meu: 267-0415. Quem atendeu disse que eu morrera num desastre de carro na Lagoa. O próprio repórter me contou depois: “a mulher deve ser uma louca, porque me atendeu chorando, dando detalhes de sua morte e dizendo que trabalhava com a família há 14 anos; 'coitada da Mary, dos filhos', chegou a dizer”.
O equívoco correu redações, chamou de volta quem já estava em casa, ameaçou desarrumar páginas prontas, congestionou linhas telefônicas e chocou amigos e parentes. Meu filho, por exemplo, que custou a ser localizado, conviveu com o boato como se ele fosse verdade por mais de uma hora. Por ser irresponsável, a tal maluca do telefone com certeza não consegue imaginar o que uma brincadeira dessas pode causar.
Lá pelas 9 horas da noite – eu tinha morrido às 16h – a imprensa descobriu que eu estava no IMS e não no IML. Do lado de fora, dezenas de repórteres e fotógrafos aguardavam atrás de um cordão de isolamento a saída do presidente. Veio então uma ordem das redações para que falassem comigo; não valia mais versão, eu tinha que ser ouvido ao vivo, se é que a expressão se aplicava ainda a mim.
Naquele momento, eu era mais importante do que o presidente, o governador, o prefeito e quem mais estivesse lá dentro. Afinal, não é todo dia que se vê alguém morrer e ressuscitar em cinco horas. O recorde era três dias, mas fora batido há muito tempo.
Lá fora os colegas apontavam suas armas para mim: microfones, gravadores, câmeras, canetas. Nunca tinha me sentido desse lado e aprendi o que é ficar na frente daquilo que a gente mesmo chama de "batalhão de jornalistas". Era uma entrevista coletiva inédita, de um ex-morto. Quando me perguntaram como é que eu estava me sentindo, quase respondi: “estava melhor no Além”.
Já de madrugada abri o computador e vi a descrição de minha morte; era tão precisa que não tive dúvida, devia ser verdade. Uma agência séria não colocaria no ar um boato desses. Seria muita irresponsabilidade. Uma falsa notícia de morte pode ter conseqüências desastrosas. Além do mais, o morto era figurinha fácil na cidade, de apuração rápida. Se a Agência resolvesse esperar um pouco, os repórteres conseguiriam desfazer o boato, como aliás desfizeram logo depois, só que aí eu já estava morto. Será que notícia em tempo real é isso, primeiro divulga e depois apura?
Não pode ser. A hipótese mais provável era a de que eu estava mesmo morto. Se um vivo é capaz de se imaginar morto, um morto pode muito bem se imaginar vivo lendo a notícia da própria morte. Era o que eu fazia ali, agora. Com material parecido, um outro defunto, o machadiano Brás Cubas, esse, genial, escreveu uma obra-prima. Com a ajuda do vinho que havia tomado para comemorar, passei a acreditar no que estava lendo. Leiam o que li:
“Morre o escritor Zuenir Ventura – Rio de Janeiro – A empregada do jornalista Zuenir Ventura, Maria Antônia, afirmou agora à noite que ele morreu hoje, após sofrer um acidente na Lagoa, na zona sul do Rio de Janeiro, por volta do meio-dia. Segundo a empregada, que há 14 anos trabalha com a família, Zuenir, autor de 1968 – o ano que não terminou, Cidade partida e Inveja faleceu às 16 horas. Ele era colunista do jornal O Globo, e sua última coluna vai ser publicada amanhã.”
Colegas dizem que nos Estados Unidos isso daria processo e indenização. No Brasil não deu nem pedido oficial de desculpas da Agência, muito menos flores para o enterro, sequer uns cravos de defunto.
Zuenir Ventura, Maio de 2010.
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