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AMAR O TRANSITÓRIO - Zuenir Ventura

Carpe diem é uma expressão latina presente numa ode do poeta Horácio, da Roma Antiga, e que ficou popular no fim dos anos 80 por causa do filme "Sociedade dos poetas mortos", de Peter Weir, em que funcionava como lema do personagem interpretado por Robin Williams.

Quem viu não esquece aquele professor de literatura carismático que subverteu a caretice de uma escola conservadora, exaltando a liberdade e a poesia, e ensinando seus alunos a pensar por si mesmos. Carpe diem significa "aproveite o dia de hoje", ou seja, desconfie do amanhã, não se preocupe com o futuro, não deixe passar as oportunidades de prazer e gozo que lhe são oferecidas aqui e agora.

Ele me foi lembrado por um amigo numa conversa em que lamentávamos algumas ameaças à saúde que atingiram pessoas queridas. Em proporções mais dramáticas, era um pouco daquilo que Ronaldo Fenômeno resumiu na sua emocionante despedida.

Como as dele, eram derrotas para o corpo. Trapaças que ele apronta na forma de um tombo traiçoeiro ou do defeito de uma peça do nosso mecanismo.


Falávamos de quanto tempo se perde com bobagens que nos aborrecem além da conta, deixando passar momentos preciosos como, por exemplo, uma dessas nossas luminosas manhãs que nenhuma outra cidade consegue produzir com igual esplendor. Desprezamos por piegas as emoções singelas e vivemos à espera das ocasiões especiais, de um estado permanente de felicidade, sonhando com apoteoses e sentindo saudades do passado e até do futuro, sem curtir o presente. 

Só quando surge a perspectiva da perda é que damos valor a deleites simples ao nosso alcance, como ler um bom livro, ouvir uma boa música, ver Alice sorrir, assistir a "O discurso do rei", ver o "Sarau", de Chico Pinheiro, receber o afago de leitor(a), voltar a andar no calçadão, beber uma água de coco ou admirar o pôr do sol no Arpoador. 


Foi depois desse papo de exaltação hedonista que meu amigo concluiu que, como o destino nem sempre avisa quando vai aprontar, urge curtir enquanto é tempo — carpe diem. 


O grande poeta pernambucano Carlos Pena Filho, que morreu aos 31 anos num acidente de carro, em 1960, disse mais ou menos o mesmo num dos mais belos sonetos da língua portuguesa, "A solidão e sua porta", que termina assim:

Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.
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Contos e Crônicas
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ZUENIR VENTURA - O Dia em que eu morri

O presidente Lula tinha acabado de discursar quando recebi a notícia de minha morte. Eu estava na cerimônia de inauguração do Instituto Moreira Salles e vi Marcos Sá Corrêa vindo em minha direção com o cabelo molhado de quem saiu do banho às pressas e a cara de quem estava vendo fantasma. De fato, eram as duas coisas. Viera correndo de casa, ali perto, para me avisar que infelizmente eu tinha morrido.

Acho que cheguei a esboçar um ar compungido ao ouvir o relato e devo ter dito que o falecido era um cara legal.

O boato fora divulgado na Internet, on-line, pela Agência Estado, que se baseara no telefonema que um repórter deu para um antigo número meu: 267-0415. Quem atendeu disse que eu morrera num desastre de carro na Lagoa. O próprio repórter me contou depois: “a mulher deve ser uma louca, porque me atendeu chorando, dando detalhes de sua morte e dizendo que trabalhava com a família há 14 anos; 'coitada da Mary, dos filhos', chegou a dizer”.

O equívoco correu redações, chamou de volta quem já estava em casa, ameaçou desarrumar páginas prontas, congestionou linhas telefônicas e chocou amigos e parentes. Meu filho, por exemplo, que custou a ser localizado, conviveu com o boato como se ele fosse verdade por mais de uma hora. Por ser irresponsável, a tal maluca do telefone com certeza não consegue imaginar o que uma brincadeira dessas pode causar.

Lá pelas 9 horas da noite – eu tinha morrido às 16h – a imprensa descobriu que eu estava no IMS e não no IML. Do lado de fora, dezenas de repórteres e fotógrafos aguardavam atrás de um cordão de isolamento a saída do presidente. Veio então uma ordem das redações para que falassem comigo; não valia mais versão, eu tinha que ser ouvido ao vivo, se é que a expressão se aplicava ainda a mim.

Naquele momento, eu era mais importante do que o presidente, o governador, o prefeito e quem mais estivesse lá dentro. Afinal, não é todo dia que se vê alguém morrer e ressuscitar em cinco horas. O recorde era três dias, mas fora batido há muito tempo.

Lá fora os colegas apontavam suas armas para mim: microfones, gravadores, câmeras, canetas. Nunca tinha me sentido desse lado e aprendi o que é ficar na frente daquilo que a gente mesmo chama de "batalhão de jornalistas". Era uma entrevista coletiva inédita, de um ex-morto. Quando me perguntaram como é que eu estava me sentindo, quase respondi: “estava melhor no Além”.

Já de madrugada abri o computador e vi a descrição de minha morte; era tão precisa que não tive dúvida, devia ser verdade. Uma agência séria não colocaria no ar um boato desses. Seria muita irresponsabilidade. Uma falsa notícia de morte pode ter conseqüências desastrosas. Além do mais, o morto era figurinha fácil na cidade, de apuração rápida. Se a Agência resolvesse esperar um pouco, os repórteres conseguiriam desfazer o boato, como aliás desfizeram logo depois, só que aí eu já estava morto. Será que notícia em tempo real é isso, primeiro divulga e depois apura?

Não pode ser. A hipótese mais provável era a de que eu estava mesmo morto. Se um vivo é capaz de se imaginar morto, um morto pode muito bem se imaginar vivo lendo a notícia da própria morte. Era o que eu fazia ali, agora. Com material parecido, um outro defunto, o machadiano Brás Cubas, esse, genial, escreveu uma obra-prima. Com a ajuda do vinho que havia tomado para comemorar, passei a acreditar no que estava lendo. Leiam o que li:

“Morre o escritor Zuenir Ventura – Rio de Janeiro – A empregada do jornalista Zuenir Ventura, Maria Antônia, afirmou agora à noite que ele morreu hoje, após sofrer um acidente na Lagoa, na zona sul do Rio de Janeiro, por volta do meio-dia. Segundo a empregada, que há 14 anos trabalha com a família, Zuenir, autor de 1968 – o ano que não terminou, Cidade partida e Inveja faleceu às 16 horas. Ele era colunista do jornal O Globo, e sua última coluna vai ser publicada amanhã.”

Colegas dizem que nos Estados Unidos isso daria processo e indenização. No Brasil não deu nem pedido oficial de desculpas da Agência, muito menos flores para o enterro, sequer uns cravos de defunto.
Zuenir Ventura, Maio de 2010.
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ÉPOCA DE OURO - Zuenir Ventura



E onde eu posso encontrar o Hélio Pellegrino?’; ‘Aqui mesmo’, respondeu o informante, apontando para as sepulturas. O psicanalista estava morto havia 16 anos

Não é qualquer literatura que permite exaltar numa semana um poeta como Vinicius de Moraes e, na outra, um cronista como Fernando Sabino. Agora, em outubro, o primeiro faria 100 anos e o segundo, 90. Houve uma época — de ouro — em que se podia esbarrar com os dois numa mesma noite num bar da cidade ou na cobertura de Rubem Braga, outro cujo centenário acaba de ser comemorado. Há pouco participei em Belo Horizonte de uma mesa em que a cantora Verônica Sabino contou divertidas histórias do pai, que criou tantas sobre o dia a dia que às vezes o cotidiano parece inspirar-se nele. Há casos que a gente ouve e diz: “Isso é coisa do Fernando Sabino.” Estou me lembrando de uma cena que parece ter saído de uma crônica do criador de “O homem nu”. Aconteceu no seu enterro, o mais demorado de que se tem memória no São João Batista. Esbaforido, o jovem repórter chega atrasado e sem saber muito bem quem é o morto e muito menos quem são os amigos a entrevistar, pergunta:

E onde eu posso encontrar o Hélio Pellegrino?

Aqui mesmo — respondeu o informante, apontando para as sepulturas. O psicanalista estava morto havia 16 anos.

Além dos debates, uma exposição organizada pelo filho Bernardo em forma de um labirinto de painéis de fotos e frases possibilitava mergulhar no universo do autor de “Encontro marcado”, o emblemático romance de várias gerações. Ele aparece em várias fases da vida. Aqui, com Jorge Amado ou com Louis Armstrong, ali tocando bateria ou numa praia do Rio (aliás, espera-se que a mostra venha para cá, já que Fernando foi o mais carioca dos cronistas mineiros). Nos textos, uma síntese de suas ideias e opiniões: “O otimista erra tanto quanto o pessimista, mas não sofre por antecipação.” “No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque não chegou ao fim.” “Não confio em produto local; sempre que viajo, levo meu uísque e minha mulher.” “Ser mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer; é fingir que não sabe aquilo que sabe; é falar pouco e escutar muito, é passar por bobo e ser inteligente.”

Há uma que soa como um projeto de vida: “Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar meu bom humor.” Gozador, Fernando gostava de passar trotes e implicar com os amigos. De Vinicius de Moraes, por ter se bandeado para a música popular, ele dizia: “Quem fez o Soneto de Fidelidade não pode ficar escrevendo ‘Vai, vai, vai, vai/ Não vou/ Vai vai, vai, vai,/ não vou’.” Também parodiava o poeta da paixão, fazendo uma substituição. Em vez de “infinito enquanto dure”, ele dizia que o amor só é infinito “enquanto duro”.

Esse lado irreverente, brincalhão, meio infantil, essa recusa de se levar a sério talvez seja o melhor retrato daquele que escolheu como epitáfio: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino.”

ZUENIR VENTURA - UM IDOSO NA FILA DO DETRAN

"O senhor aqui é idoso", gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal "senhor". Como ninguém protestasse, o policial abriu o caminho para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.


Olhei em volta e procurei com os olhos 0 velhinho, mas nada. De repente, percebi que o "idoso" que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.

Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos "entra"; dos 50, quando, deprimido, salte que jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na "terceira idade". Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem, um outro marco, aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de "idoso", ainda mais numa fila do Detran.

Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: "idoso é o senhor seu pai. O que mais irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver minha identidade? E 0 guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim? Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: "esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!" Mas que nada, nem um pio.

O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima — do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: "Isso é uma sacanagem comigo", me disse, "eu não mereço." Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária reagira assim: "Mas ninguém lhe dá isso." Respondi que, em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran, nem isso, nenhuma alma caridosa para me "dar" um pouco menos.

Subi e a mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: "Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas." Hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: "O senhor não tem mais de 65 anos? Não é idoso?"

— Não, sou gestante — tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí resmungando: "não tenho mais, tenho só 65 anos."

O ridículo, a partir de uma certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um mês, de um dia. "Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15", já ouvi essa discussão.

Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe. Ai, se não me falha a memória — e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade —, me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali comigo. 

Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração, há um respeitável time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Evandro Carlos, Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos, Cony, Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em ônibus há um bom tempo). Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou com outro — de ano, meses ou dias —, e eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo.


Ah, sim, onde é que eu estava mesmo? "No Detran", diz uma voz. Ah, sim. "E o atendimento?" Ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas mesmo sem entrar em fila passa-se um dia para renovar a carteira. Pelo menos alguma coisa se renova nessa idade.

ZUENIR VENTURA - O clube dos gênios mortos

Heleno de Freitas, Raul Seixas e Chico Anysio. O primeiro no futebol, o segundo na música e o terceiro no humor. Os dois primeiros foram tidos como loucos, o terceiro, como normal, o que dificulta a caracterização dos tipos a que chamamos de gênios. Podem ser esquisitos ou malucos, mas podem ser também gente como a gente, aparentemente. Em menos de 15 dias estive em contato com os três: dois na tela grande — "Heleno", de José Henrique Fonseca; "O início, o fim e o meio", de Walter Carvalho — e Chico em todas as TVs, jornais e revistas do país.

Não vi Heleno jogar, só ouvi (sou da época em que se ouvia, mais do que se via futebol), mas ele foi meu ídolo, mesmo sendo botafoguense incurável, tanto quanto a doença que o matou. Raul também só conheci de ouvido. Embora eu tivesse lido muito sobre eles, os filmes me foram indispensáveis para a compreensão desses trágicos personagens. Não concordo com os que acham que Heleno foi o precursor de bad-boys ou rebeldes sem causa como Edmundo. Há pelo menos uma diferença: mesmo bebendo e cheirando éter, Heleno, o angustiado perfeccionista, só fez mal a si mesmo. Sem sífilis e com barba e cabelos grandes, ele estaria mais para contestadores como Sócrates e como Afonsinho, outro botafoguense maltratado pelo clube de Dapieve e Sérgio Augusto.

Em relação a Raul, o documentário de Walter, que é também o extraordinário fotógrafo de "Heleno", desfaz o mito que atribui sua genialidade às drogas (impressionante a revelação de Paulo Coelho de que ele, o mago, foi quem iniciou o parceiro no vício). O compositor foi genial apesar delas, que, junto com o alcoolismo e a pancreatite, só serviram para abreviar sua vida. Heleno e Raul pertenceriam à categoria dos "iracundos", dos seres radicalmente inconformados, na qual o antropólogo Darcy Ribeiro se incluía e incluía Glauber Rocha.

De Chico Anysio também não fui próximo, a não ser por meio de seu irmão Zelito, meu amigo. Graças a isso, tive o privilégio de passar alguns fins de semana no sítio da família e, em uma dessas vezes, pude observar que o inacreditável criador de mais de 200 tipos (Fernando Pessoa criou 68 e quatro heterônimos) não correspondia à expectativa de que profissional do riso tem que fazer graça o tempo todo. Não ri uma vez sequer com ele, só com o irmão cineasta, que, esse sim, parecia o humorista da família.

O que se pode concluir desses exemplos é que não há receita para a matéria-prima com que são feitos os gênios. Trata-se de um enigma. O que há de comum é o fato de que cada um é uma matriz, um padrão original, uma fôrma que não consegue ser replicada. Em outras palavras, eles são aqueles raros exemplares que vieram ao mundo para serem fundadores de novos modos de proceder em qualquer ramo de atividade.

ZUENIR VENTURA - A face radiante

No dia em que saiu aqui o artigo "O clube dos gênios mortos", sobre Heleno de Freitas, Raul Seixas e Chico Anysio, juntou-se ao grupo Millôr Fernandes, tornando o céu mais divertido e inteligente, e a Terra mais burra e sem graça. Alguns falaram em mau humor de alguém lá de cima, mas eu prefiro falar em egoísmo divino, aliás, compreensível. Quem não gostaria de ter a seu lado esses e outros que partiram? O consolo, uma espécie de compensação, foi o jorro de esperança lançado pelo neurocientista Miguel Nicolelis na mesma semana, ao afirmar que o Brasil sempre foi o país de um futuro que jamais chegava. "Agora, a face é radiante." Ele recebeu o prêmio principal do Faz Diferença, que reúne a cada ano pessoas e iniciativas que mais se destacaram no país.

Eleito Personalidade do Ano de 2011 por suas pesquisas com o objetivo de levar pessoas com paralisia a andar pela força da mente, Nicolelis foi o último a discursar, baseando seu entusiasmo não no próprio trabalho, mas no que tinha visto e ouvido ali dos personagens que compuseram a mais comovente das edições do prêmio, com a plateia várias vezes aplaudindo de pé. E também a de maior diversidade social. Lá estavam o homem mais rico do país, Eike Batista, o presidente de uma poderosa montadora de caminhões e o milionário Neymar (na pessoa do pai), ao lado de jovens de origem pobre, como o quilombola Damião Santos, do sertão goiano, ou como Tião, o catador de lixo que virou celebridade. Ou então como Getulio Fidelis, coordenador do curso pré-vestibular Invest, relembrando a única vez que estivera naquele hotel há nove anos, como office-boy. O momento de redenção moral ocorreu com a premiação dos tenentes da PM Disraeli Gomes e Ronald Cadar, por terem recusado o suborno de R$ 1 milhão de um traficante.

Grande novidade foi a tríplice premiação da ciência. Além do principal homenageado, foram contemplados os cientistas Stevens Rehen e Denise Pires Carvalho. Ele e sua equipe pela produção de metade de toda a ciência de células-tronco embrionárias do país. Ela e sua equipe por terem feito avançar o tratamento para os que sofrem problemas graves de tireoide. A cultura contou com vários representantes. Julia Bacha, pelo seu cinema, que ajuda a promover a paz no Oriente Médio. Ítalo Moriconi pelo esforço de aproximar literatura e grande público. Cordel Encantado por levar para a TV a cultura nordestina. Antonio Bernardo pelos 30 anos como designer de joias. Carlos Saldanha não foi e a arara Blu aproveitou para reclamar o prêmio para ela. Criolo foi representado pelos pais. Como surpresa, um minishow de Tiago Abravanel. Ou de Tim Maia?

Foi esse desfile de realizações que empolgou Nicoleli. Quando ele afirma que "o Brasil deixou de ser tristes trópicos", não há como não concordar. Desde que não se olhe para Brasília.

ZUENIR VENTURA - As opções de dor

Quem melhor definiu a dramática decisão do STF de permitir a interrupção da gravidez de bebês sem cérebro (anencéfalos) foi a ministra Cármen Lúcia, que justificou seu voto favorável à ação de forma emocionada e precisa: “Todas as opções são de dor. A escolha é qual a menor dor. Não é escolha fácil, é trágica sempre.” Católica praticante, ela advertiu, no entanto, que o Supremo não estava decidindo sobre o aborto, e sim autorizando um caso específico. “A mulher deve ter o direito de escolher como enfrentar esse momento de dor.” Segundo a imagem que usou, o útero é o primeiro berço do ser humano. “Quando o berço se transforma em um pequeno esquife, a vida se entorta.”

Por tudo isso, esta talvez tenha sido a questão mais delicada e transcendente já julgada por aquele tribunal, mexendo com dogmas religiosos, princípios morais, conceitos e preconceitos, direito individual, livre arbítrio, dignidade da mulher, enfim, envolvendo a própria concepção do ser humano. As reflexões e justificativas dos oito juízes que votaram a favor (só Ricardo Lewandowsky e Cezar Peluso votaram contra; Dias Toffoli declarou-se impedido) estiveram à altura da importância do tema e revelaram a inconsistência dos protestos feitos em nome da defesa e preservação da vida, como se ela é que estivesse em jogo e não sua impossibilidade. Se não há possibilidade de sobreviver, já que o recém-nascido acometido do mal morre em seguida, como falar em direito à sobrevivência?

Como disse o relator do processo, ministro Marco Aurélio Mello, não se pode sequer falar em aborto nesses casos, pois se trata de feto sem cérebro. Ele considera que seria injusto impor às mulheres “o sentimento de meras incubadoras, ou melhor, de caixões ambulantes”. Luiz Fux também usou imagem forte, ao dizer que impedir a interrupção “equivale à tortura”. Ele contou que todas as pessoas contra a descriminalização que ouviu “tinham crianças sãs”. Ayres Brito, cujo voto deu maioria à aprovação, recorreu a uma metáfora mais poética, comparando o anencéfalo a uma “crisálida que jamais chegará ao estágio de borboleta, porque jamais alçará vôo”.

O que parece não ter ficado muito claro para alguns é que a decisão do Supremo não induz nem exige ou obriga, apenas permite que a mulher faça sua opção de dor sem ser estigmatizada, sem que seja considerada uma criminosa por isso.

ZUENIR VENTURA - O poder da irrelevância

Quando em 2009 o escritor inglês Richard Dawkins fez sucesso na Flip falando mal das religiões, foi muito solicitado para explicar a inexistência de Deus, na qual, como bom ateu, acreditava religiosamente. Hoje, se estivesse vivo, seria chamado para comentar a frase “menos Luíza, que está no Canadá”, bordão que se propagou na internet como se fosse um vírus. Eu disse bordão? Desculpem, queria dizer meme, o termo da moda lançado em 1976 por Dawkins no seu livro “O gene egoísta”. Equivalente cultural de gene, o meme é capaz de se replicar, passar de uma mente para outra e se disseminar de maneira viral. Como esclarecia o autor, pode ser uma melodia, uma ideia, um poema, um comportamento ou, acrescento, uma irrelevância, como a afirmação “hoje é dia de rock, bebê”, da Cristiane Torloni, ou a aderência inevitável do “Ai, se eu te pego”.

O que aconteceu com o meme Luíza foi mais impressionante, porque surgiu na Paraíba e se espalhou pelo país. Num anúncio imobiliário, um suposto comprador, depois de exaltar os apartamentos à venda, diz: “É por isso que fiz questão de reunir toda a minha família (ao fundo, a mulher e um casal de filhos), menos Luíza, que está no Canadá, para recomendar esse empreendimento.” Pronto, e a moça de 17 anos virou celebridade instantânea. Retornou ao país, deu dezenas de entrevistas, criou um blog sobre moda e, segundo a agência que agora cuida de sua imagem, vai se “posicionar como a formadora de opinião que ela tem potencial para ser”. O último feito da jovem foi ser questão numa prova de concurso público no interior de SP.

O “caso Luíza” ilustra o fenômeno de consagração da insignificância em que se transformou o meme no Brasil. Assim como uma bobagem replicada pode virar notícia, assim também um desacontecimento surge como fato relevante, um brother do BBB pode amanhecer famoso, sem quê nem por quê, ou uma mentira política às vezes ganha ares de verdade. Basta que, jogados na rede, sejam repetidos ou tuitados à exaustão. Como dizia McLuhan nos anos 60, “o meio é a mensagem”, ou seja, mais do que a forma e o conteúdo, o que importa é o modo como ela é divulgada.

No processo de comunicação de massa, a transmissão é tão ou mais importante do que a emissão e a recepção. O meme sempre existiu, com outros nomes — bordão, palavras de ordem, slogans — mas nem sempre para transmitir irrelevâncias. Ao contrário. O mais antigo deles, o “Faça-se a luz” (“Fiat lux”), não caiu na boca do povo porque não havia internet. Pouco antes de morrer, José Saramago diagnosticou a “tendência atual para o monossílabo” como forma de comunicação. Ele se referia ao twitter, mas, exagerando, pode-se estender o fenômeno ao meme. A sua previsão é de um pessimismo hilário: “De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido.”

A Casa Encantada & À Frente, O Verso.

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