Tínhamos acabado de gravar o “Saia Justa” desta semana, do qual, pela primeira vez, apenas nosso elenco masculino participava. De repente, Dan Stulbach — ou teria sido Xico Sá? — dá um tapinha na testa. “Esquecemos de falar da confusão que o Laerte arrumou ao usar o banheiro feminino num restaurante!”
Que mancada. Como é que deixamos fora um tema tão quente como esse, quintessência das saias justas deste milênio?
O cartunista Laerte, sessentão que há uns três anos resolveu se vestir de mulher e passear por aí usando looks de gosto duvidoso, é muito querido pelos paulistanos da tribo que se reúne nos bares lá pras bandas da Vila Madalena. Laerte, da noite para o dia, pelo menos na percepção de quem não frequenta as rodas certas da boemia, virou Sônia.
E Sônia se transformou numa celebridade, dessas que atraem todos os fotógrafos nos eventos e enche páginas de jornal e revista com entrevistas sobre a velha e carcomida moldura sexual a que estamos todos submetidos.
Até aí, tudo bem. Sônia tem namorada (ou será o Laerte?), ex-mulher e filhos. A sem-cerimônia com que circula pelo mundo escancarando sua fantasia faz com que a gente se pergunte qual é o tamanho da liberdade que concedemos a nós mesmos. Esses que transgridem normas sem prejudicar ninguém são os mais fortes, acredito eu. Eles fazem do mundo inteiro o seu espaço vital, não se contentam com a parte com que temos de nos virar nesse latifúndio da falta de imaginação e de ousadia.
“ Mas o que você acha?”, pergunta Dan.
“Ele pode usar o banheiro feminino quando está encarnando a Sônia?”
Não paro pra pensar.“Precisa perguntar para as mulheres se elas concordam com isso”, respondo. “E para os homens também”, rebate ele.
Sucedeu-se uma conversa escatológica sobre como mulheres e homens usam o banheiro, se a higiene do espaço é mais bem cuidada por quem usa o vaso sanitário em pé ou se, ao agachar, como fazem as moças, os resíduos líquidos que encharcam o chão não se equivalem aos famosos respingos que os rapazes não conseguem evitar.
Poderia ser esse o critério ideal para resolver o problema sem precisar obrigar a construção de um terceiro banheiro, para transexuais, cross-genders, travestis e assemelhados? Ou seja, instituiriam-se dois tipos de banheiro com nova sinalização: ali para os que fazem xixi em pé e aqui para quem se senta nessas horas. Vários problemas culturais estariam resolvidos como mágica.
Será? A reação de Laerte/Sônia ao ser solicitado/a a se dirigir ao banheiro masculino depois da reclamação de uma mulher mostra que não é bem assim. Para ele, o que importa é a roupa que se usa, correspondente à pessoa que se sente ser naquele momento. É complicado. Laerte armou um bafafá, reclamou seus direitos de “dupla cidadania” e conseguiu apoio da coordenação de políticas para a diversidade sexual de São Paulo.
E na próxima vez em que ele tiver de escolher um banheiro no restaurante? E se ele for para o masculino e um homem protestar?
Para as cabeças que se enxergam abertas é facílimo defender a liberdade de expressão. Só para os muito tacanhos é insuportável conviver com opiniões divergentes, encarar outros processos mentais, outras crenças, outros comportamentos. Não é apenas que o mundo seja mais colorido quando aceitamos a diferença dos outros. É também porque a vida fica mais divertida.
Mas mesmo para os que se interessam e se divertem, diante de um desafio novo há que se fazer um esforço pelo posicionamento justo. E quem tem a prerrogativa da justiça nesse caso? O direito de escolher que banheiro usar está com Laerte, que inventou para si uma nova expressão? Ou com quem tem o direito à privacidade adquirido pela anatomia do sexo?
Um homem vestido de mulher é rejeitado por seus pares diante do mictório ou estes são indiferentes ao vestuário do companheiro quando constatam o órgão que têm em comum? Às mulheres basta a identificação estética que se processa pelo espelho ou a roupa encobrindo um homem no cubículo ao lado configura algum tipo de ultraje?
Tenho um palpite. Acho que o problema é mais complicado para as mulheres resolverem. Nenhuma de nós se incomodaria se uma moça de terno e gravata usasse o banheiro feminino. Identidade de mulher se dá pela aparência não pela exposição genital, não é mesmo?
Fosse eu a encontrar o Laerte no banheiro do bar, não iria reclamar com o gerente. Puxaria um papo com ele, não deixaria escapar uma história boa como essa.
Mas sou sincera: é porque se trata de Laerte e de sua Sônia, só por isso. Fosse um completo estranho, eu ficaria um tanto constrangida.