As duas engenheiras viviam muito bem dividindo as tarefas em um laboratório da universidade. Uma era a chefe; a outra, aluna e admiradora. Vamos chamar a chefe do laboratório de X e a técnica de X1.
X1 fora aprovada em um concurso para um cargo técnico por seus méritos como pesquisadora, currículo, experiência, aquelas coisas todas. Como eram doutoras e uma mais estudiosa que a outra, logo X e X1 se tornaram grandes parceiras nos trabalhos do cotidiano acadêmico. E viviam, X e X1, muito felizes.
X1 fora aprovada em um concurso para um cargo técnico por seus méritos como pesquisadora, currículo, experiência, aquelas coisas todas. Como eram doutoras e uma mais estudiosa que a outra, logo X e X1 se tornaram grandes parceiras nos trabalhos do cotidiano acadêmico. E viviam, X e X1, muito felizes.
Até que um dia, havendo uma vaga para o mesmo cargo técnico que X1 ocupava, foi aprovado um homem que veio trabalhar no laboratório.
O homem, vamos chamá-lo de Y, pois é importante que estejamos atentas ao senso de abstração que uma história dessas requer. O homem, daqui para frente chamado de Y, pois bem, era um corintiano praticamente fundamentalista. Sendo corintiana a maior parte da população masculina do Brasil, não há nada demais nisso. Torcedor alucinado do seu time, Y também jogava futebol toda semana e assistia aos jogos de outros times.
Poderíamos dizer que Y é um homem típico, mas isso nos faria cair na perigosa formulação do essencialismo em que os diferentes não são contemplados, por isso é mais adequado dizer que se trata de um “tipo de homem”. Fato é que Y é um tipo de homem muito simples: gosta de cerveja e de mulheres, entendendo, de tanto ter visto as propagandas de cerveja que o formaram subjetivamente, que esta é uma equação em que os termos são necessariamente ligados um ao outro. E isso porque esse tipo de homem que Y é tem um pequeno probleminha relativo ao seu jeito de adquirir conhecimento: ao aprender algo, não aceita mais opiniões diferentes sobre o assunto. Em resumo, isso quer dizer que Y é autoritário.
Aí começa o nosso problema, como espectadores dessa cena. Y, sendo apenas graduado, foi trabalhar num laboratório onde há duas mulheres, X e X1, que são doutoras. Ele não entende que a equação mulher + cerveja não esteja exposta diante dele quando trabalha com elas. Não é apenas a característica gnosiológica de Y que fica comprometida neste momento. Sabemos, nós que assistimos à cena, que todo aprendizado tem relação com os afetos, e, portanto, é mais do que claro que as emoções de Y estão intensamente presentes, inclusive sua compreensão falsa sobre as mulheres e seu autoritarismo fazem parte disso tudo. Pergunta que nos fica: se Y é autoritário, ou seja, aquele que acha que tem razão em tudo, como fica diante de duas mulheres doutoras, ou seja, que têm mais experiência e conhecimento que ele?
Para compreendermos o que se passa, vejamos alguns detalhes importantes.
Já sabemos que X1 é doutora e Y não. Precisamos saber que X1 tem senso de duas coisas que chamaremos aqui de “coleguismo” e “profissionalismo”. Logo, X1 sabe que, mesmo não admirando o modo de ser de alguém com quem convive, ela precisa ser moral ou eticamente correta em relação a esta pessoa, no caso Y. E este senso moral e ético implica ajudar Y no próprio trabalho, posto que estando há mais tempo no serviço, tendo experiência com as máquinas, e tendo feito pesquisa de ponta que lhe rendeu seu doutoramento, X1, de fato, tem como orientar Y nos procedimentos técnicos diários. E assim o faz, mesmo percebendo os vastos limites de Y.
E Y, por sua vez, pode aproveitar tudo isso para seu desenvolvimento profissional e, até mesmo, pessoal. Acontece que sendo Y um tipo de homem autoritário, ou seja, dono de um duplo suposto saber, tanto sobre as mulheres quanto sobre seus conhecimentos adquiridos em geral na ciência onde se graduou, sente-se ofendido por estar justamente sendo orientado ou, em alguns casos, contestado por uma mulher, no caso X1.
No laboratório, vemos Y dar um soco na parede, rasgar formulários, ficar vermelho de raiva, gritar, atirar longe o jaleco e sair pisando firme porta afora… Isso quando X1 se aproxima dele avisando-o de que está cometendo um erro no procedimento.
No outro lado da cena, vemos Y entrando no gabinete de X, após um de seus escândalos. Vemos Y ora de cabeça baixa, ora de olhos fundos a choramingar que se sente chateado, opresso, que é, afinal, um pobrezinho. X fica com pena de Y, afinal, ele está tão magoado…
X, então, evidentemente compadecida, vai até X1 dizendo:
— Pobrezinho de Y, ele ficou tão magoado com o que você fez X1…
— Mas o que eu poderia fazer, X? Precisava avisá-lo do erro, poderíamos perder dias de trabalho.
— Você tem que entender, X1, que você está aqui há muito mais tempo, conhece todos os equipamentos do laboratório. Você é brilhante, tem mestrado e doutorado, tem um desempenho fantástico.
— Ora, obrigada — disse X1 timidamente.
— Só que isso o assusta, X1. Você tem que ajudar Y a lidar com isso.
— Eu?
— Claro, quem mais poderia ajudá-lo?
X1 não entendeu muito bem. Responsável que era, estava sempre atenta a seus próprios limites. Sabendo-se bem jovem, X1 costumava estudar muito e tentar aprender com quem fosse mais experiente do que ela, por exemplo X. Deste modo, ficou pensando no que poderia estar acontecendo entre eles: X, X1 e Y. E não encontrando explicação sugeriu o seguinte:
— X, penso que esta seja uma questão que Y deveria resolver conversando com a mãe dele ou fazendo terapia. Não creio que os problemas emocionais de Y sejam problema meu. Não uso meus atributos e títulos para me posicionar acima de Y. Não lhe trago meus problemas pessoais, não penso que possa responsabilizar Y por algum que eu venha a ter. Ao contrário, estamos no mesmo cargo, apesar de nossa formação diferente, ensino-lhe tudo o que posso para que o trabalho flua da melhor maneira.
— Y está com um problema quanto à sua virilidade no trabalho, você, X1, o humilha ao ganhar mais do que ele, ao saber mais do que ele, ao ser mais brilhante do que ele. Você tem que ajudá-lo para que o trabalho não seja prejudicado — diz X, convencida do papel de X1.
X1 permanece boquiaberta. X se retira olhando para X1 com um pedido de condescendência, cheio de anseios de compreensão, afinal que há um homem do tipo de Y naquele local de trabalho em que a exigência de conhecimento técnico e racionalidade estão sempre em xeque. E, no entanto, aquele homem do tipo de Y tem um problema emocional que vem perturbando a paz coletiva.
X1, perplexa como não poderia deixar de ser, percebe a inversão de valores exposta na percepção de X. X exige de X1 não apenas que seja responsável pelo trabalho, pelo progresso técnico de Y, mas também por suas emoções, como se Y fosse um bebê, uma criança, ou, se quisermos usar um termo politicamente incorreto, mas carregado de significado simbólico: uma mulherzinha.
Em frente ao espelho do banheiro, nós que podemos ver as cenas todas, inclusive a cena por trás da cena, vemos Y olhando em seus próprios olhos. Y chora e chora muito. Então, como se apenas encenasse, Y para de chorar e exibe os músculos dos braços ao espelho para seu próprio deleite. Y dá uma olhada no celular, vê quanto de dinheiro tem na carteira, chupa a barriga pra dentro e, antes de deixar o expediente — afinal o horário já se foi — treina um sorriso no mesmo espelho onde cinco minutos antes, exibia suas lágrimas.
Nós, que observamos a cena e gostamos muito de entender o que se passa, sabemos que Y é histérico. Sabemos que a histeria não é só um problema feminino. Ao contrário, há muitos homens histéricos. Mas os homens mesmos não gostam dessa ideia e, por isso, raramente a ciência até então dominada pelos homens investigou o tema a fundo.
Há um problema com a representação de gênero na questão da histeria. Isso relativamente ao fato de escolher como se faz papel de homem e como se faz papel de mulher. Assim como as famosas mulheres histéricas de que Freud tratou desejariam ser o homem que lhes faltava, o homem histérico desejaria ser a mulher que lhe falta. A falta, é claro, é simbólica. Devemos saber que a histeria é fruto de um oco, de um vazio que o histérico se esforça por esconder. Daí que ele faça cena para desviar a atenção alheia. No caso de Y, trata-se de um vazio do conhecimento que é também um vazio do poder. É bem óbvio que Y se sinta ofendido com X1, mais jovem que ele e mais bem sucedida… Além de tudo, X1 rompe com a equação mulher + cerveja demonstrando, de modo contundente, como Y não entendeu nada da vida. E ele quer esconder isso tudo.
Há cada vez mais homens do tipo de Y em nossa cultura, desde que as mulheres saíram de casa e foram trabalhar, mostraram sua competência em todos os campos, do trabalho à ciência, e cada vez mais em todas as áreas, da economia à política… Estes homens do tipo de Y representam o novo sexo frágil, mas tentam mostrar forças e, quando percebem que não vão conseguir, caem na mesma histeria que as mulheres de antigamente impedidas de realizar-se em outra esfera que do casamento e da maternidade. O homem histérico do tipo de Y pode torcer para o Timão, ter músculos imensos, pode beber todas, “pegar” todas, mas é sempre o homem-mulherzinha dando provas de sua fragilidade, mostrando que o sistema lógico não é tão lógico, que a harmonia não vale a pena. Um histérico gosta de atrapalhar quando tudo parece estar bem. Problema é que, às vezes, a fraqueza seja uma força e que, no extremo os covardes como são os histéricos, se tornem violentos. Daí que nesses tempos a violência passional de homens contra mulheres cresça tanto. O homem que bate e mata é tão histérico quanto o que tem ataques dentro do laboratório ou em qualquer outro ambiente de trabalho ou de casa.
Desejamos que X continue preocupada com o que acontece em seu laboratório. Desejamos que X1 continue sendo uma pessoa responsável e lúcida e siga com seu trabalho sem se deixar enganar pelos falsos pobrezinhos. Nós a apoiamos na sua conduta moral e ética. E desejamos que Y vá fazer uma terapia para poder ser a mulher que ele, como histérico, deseja ser.
Como sempre digo para minhas amigas, o problema nunca é um homem que quer você, mas um homem que quer “ser” você.