Passei
a semana inteira com uma frase na cabeça. Uma coisa que Zezé
Polessa me disse, uma madrugada dessas, no meio da zoeira de uma
festa. Antes de arrumar sua cabeça, arrume sua casa. Acho que é da
Dra. Nise da Silveira, se não me engano. Zezé me disse que gostava
deste pensamento e eu acabei guardando as palavras, desejando
escrever uma crônica a partir dela, mas o telefone não parou de
tocar, tive que resolver detalhes de Capitanias Hereditárias, que
está quase estreando, depois fui ensaiar as substituições em South
American Way, de modo que quando finalmente me sentei e encarei a
tela, já não havia mais sequer casa para arrumar, quanto mais
cabeça. Havia somente uma imagem que se impôs, na calada da noite:
a platéia vazia de um teatro em Buenos Aires há quase uma década
atrás, na última apresentação de A Partilha, na montagem de lá.
Nós
atravessamos a platéia do Tabaris, em silêncio, pois as despedidas
gostam de repentinos mergulhos internos. Cruzamos a passadeira
vermelha, o olhar perdido nas curvas dos camarotes, acompanhando as
espirais das colunas e alguém comentou que as espirais do tempo eram
bem mais poderosas do que aqueles adornos. Aí, voltou o silêncio e
a respiração começou acelerou, porque dizer adeus é sentir medo,
de alguma forma. O medo do não reencontro, o medo dos corpos
afastados pela multidão, o medo enorme cada vez que você dorme e
não possa despertar, como na canção. Despedidas me deixam sempre
com a sensação do menino apavorado, perdido no pavilhão.
A
temporada de A Partilha, em Buenos Aires – lá chamou-se Nosotras
que nos queremos tanto – estava terminada, depois de quase três
anos e muitas histórias. Doris del Valle, uma das estrelas do
espetáculo, afastou-se da marquise iluminada do teatro e caminhou
até um ambulante que fazia ponto, logo adiante. Voltou com uma
bandeira argentina jogada sobre o corpo, o sol brilhando na altura do
umbigo e guardo essa fotografia na lembrança: a marquise iluminada,
a atriz loura me estendendo a bandeira, um carinho, uma peça no jogo
da memória. Tenho o retângulo de pano azul e branco até hoje e,
curiosamente, ele guardou o perfume daquela madrugada em suas fibras.
O
Tabaris não existe mais. Era um teatro lindo, não deveriam ter
permitido que desaparecesse. O eterno descaso pelo patrimônio
cultural nas Américas saqueadas termina por destroçar aquela
geografia que aprendemos a amar, no correr da vida. E vamos
absorvendo os golpes, cada qual a sua maneira – convenhamos, não é
coisa fácil de se administrar internamente, assistir ao espetáculo
da destruição do mundo que conhecemos. Sempre obrigados a
redesenhar o mapa, sempre em busca do caminho de casa, eu ia
pensando, enquanto arrumava as malas, novamente rumo a Buenos Aires,
desta vez com a história da pequena notável, que vamos cantar por
lá. Ainda uma vez, a baiana vai mostrar o que tem e exibir,
orgulhosa, a esperança que traz em seu tabuleiro. Esperança que,
diga-se de passagem, dividimos com os irmãos argentinos, cuja
história se mistura com a nossa, através dos tempos – uma saga de
sangue e de dor, como no melhor dos melodramas. Vamos todos - mais
de trinta, como um bando de pássaros migratórios em busca de algum
verão e eu, particularmente, em busca de algumas saudades.
Terminei
a mala e corri para a estréia de Adriana Calcanhoto, porque sou fã
de sua música e da poesia de seu coração urbano, atento às
mudanças do mapa. Sempre que a ouço cantar, entendo que ela
generosamente divide conosco aquele momento de vida enquadrado na
janela do carro que vibra uma corda dentro. Talvez por causa da luz
nos cabelos da moça que passa, talvez porque o mar estivesse ao
fundo, sabe Deus! Mas aquele fotograma faz toda a diferença naquele
dia, talvez o dia em que fomos mais felizes e não nos demos conta,
tanta coisa ainda por fazer!
Fui
com Stella Miranda e, lá pelas tantas, quando Adriana nos passou a
sua cantada e perguntou: depois de ter você, poetas para quê?,
Stella me sussurrou ao ouvido que uma canção daquelas dava vontade
da gente amar sem pudor e ter o peito outra vez abrasado pela paixão.
- Amor
sempre decepciona. – eu disse, tentando não soar amargo e, entrar
no coração da poeta, os olhos arregalados, retendo cada partícula
da luz. – Amor tem prazo de validade.
- Não,
o próximo. – Stella me disse, sorrindo, como quem beija as
palavras. – Nunca, o próximo.
Achei
que ela tinha toda razão e corri de volta para casa, antes que o dia
raiasse e, com a chegada daquela dama grega de dedos róseos, eu
finalmente ganhasse as alturas, em busca do próximo amor.