É irresponsável com os jovens do asfalto e do morro
tentar dinamitar o projeto das UPPs
Só os ingênuos, sem perspectiva histórica ou com má-fé
podem proclamar que a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) é uma enganação
para inglês ver. Que jovens de 18 anos de berço esplêndido confundam tudo, até
entendo. Mas adultos que sobreviveram aos governos Garotinho e Rosinha (argh!)
e à última fase da prefeitura Cesar Maia (argh!) só têm uma desculpa para dizer
que a UPP é uma mentira: a pendenga partidária que desmerece tudo que vier de
um adversário político. Quando bandeiras de partidos substituem os valores de
nossa consciência, a vida e a inteligência naufragam.
Impossível não lembrar – a não ser que sejamos
acometidos de uma amnésia oportunista – o pacote dos ex-desgovernos do Rio: a
politização da política de segurança do Estado, os pactos sórdidos com
traficantes, o descontrole no número de “autos de resistência” (eufemismo para
extermínios nos becos por homens fardados), a absurda mortalidade de jovens
favelados em brigas de gangues, o abandono total das favelas, que se espalhavam
pelas matas e por áreas de risco.
Nossas favelas eram fortalezas do tráfico e do crime
organizado, isoladas por barricadas. Havia o terror imposto aos moradores de
bem, o aliciamento escancarado de garotos, a gravidez precoce de garotas
encantadas pelos chefões, modelos de “heróis” armados e donos do pedaço.
Jornalista só entrava ali após acordo prévio com o chefão ou assumindo risco de
morte, como aconteceu com Tim Lopes.
É irresponsabilidade com o Rio de Janeiro e com o
futuro dos jovens no asfalto e no morro tentar dinamitar o projeto das UPPs só
porque a população tomou ódio ao governador Sérgio Cabral em seu segundo
mandato, depois de ele ser reeleito com 66,08% dos votos e com a bênção de
Lula. Um ódio compreensível diante da arrogância que Cabral construiu, ao
menosprezar qualquer crítica e se fazer de “ixperto” como seu ídolo na terra e
no céu, Lula.
Quantos Amarildos sumiram nas favelas, quantos
pedreiros e filhos e mulheres de pedreiros foram incendiados em fornos por
traficantes ou executados por policiais corruptos e metidos no tráfico e
ninguém falou nada? Cariocas que hoje condenam pesadamente as UPPs iam à praia,
subiam a serra, lotavam os bares e saíam em seus carrões 4x4 sem tomar
conhecimento das chacinas nos morros. Era um assunto inconveniente. Os cariocas
de bem nunca tinham enlameado nas ladeiras da Rocinha seus tênis made in China
– a não ser para comprar droga.
Só comecei a entender a Rocinha quando dormi ali uns
dias, em agosto de 2007, na Rua 2, para escrever sobre a urbanização comandada
pelo arquiteto Luiz Carlos Toledo. Já no governo Cabral, mas antes das UPPs.
Uma cena nunca me saiu da cabeça. Eu bebia cerveja num boteco. Um rapaz passou
na ruela, com um saco de mercado numa das mãos e uma submetralhadora cromada na
outra, apontada para baixo. Eu não conseguia enxergar a arma, mesmo alertada
por minha amiga. Como todos do asfalto, reconheço uma arma apenas quando é
apontada para mim. Ali, na Rocinha, a submetralhadora equivalia às frutas e
verduras, quase um peso compensando o outro, carregados com a naturalidade do
cotidiano, como se não houvesse contradição entre a fonte da vida e o
instrumento da morte.
Vamos, sim, criticar: está muito longe o cumprimento
das promessas das UPPs. O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, está
consciente das frustrações. Sempre foi claro: o objetivo era recuperar os
territórios e abrir caminho para a ocupação social do Estado e para a integração
das favelas e dos jovens à cidade. Nunca se prometeu prender todos os
traficantes ou acabar com o tráfico.
Há dois problemas sérios. Um é o Estado, incompetente
para tornar prioridade a infraestrutura das favelas. É lenta demais a ocupação
social – com saneamento, serviços essenciais de limpeza, luz, habitação,
educação, saúde. O outro problema é a força policial: há casos excessivos de
desvio de conduta. Foram expulsos 1.500 da corporação? Muito mais terão de ser
expulsos.
Os equipamentos desligados simultaneamente na Rocinha –
câmeras e GPS – no dia em que Amarildo foi detido bastariam para afastar o
comando local da UPP até que se concluíssem as investigações. Ah, agora a
versão é que ele e a mulher, Bete, ajudavam o tráfico nas horas vagas? É uma
versão plausível, sim. Nada nas favelas é preto no branco. Há uma zona
cinzenta, familiar e histórica que não acabará de um dia para o outro. Mesmo
que Amarildo e Bete ajudassem, ele não poderia ter sumido depois de ser levado
de casa num carro da UPP. Foi morto por traficantes? Por policiais? Ou por
ambos?
É forçada a palavra “pacificação”. Não existem favelas
pacificadas. Esse “P” da sigla talvez seja um equívoco, porque promete uma
utopia irrealizável. Nenhuma cidade deste país, grande ou pequena, está livre
de tráfico, assassinatos, latrocínios. Como exigir que uma favela seja uma ilha
da fantasia, dissociada da realidade da violência urbana? O Brasil está longe
de ser “pacificado”.