“O Rio de
Janeiro continua lindo”.
(Gilberto Gil)
Mexendo nos meus escritos, encontrei um texto de 2010,
que falava das chuvas que assolaram o Rio de Janeiro. Nele, eu fazia um contraponto entre a
tragédia e uma pesquisa com adolescentes, que denunciava o olhar romântico
sobre a cidade, como se aqui não houvesse problemas graves. Como se, de alguma
forma, simplesmente ser carioca compensasse tudo. Assuntando a respeito com
amigos, de repente me vi no mesmo lugar – com a mesma atitude onírica em
relação ao Rio. Hoje tenho a nítida sensação de que esta espécie de alienação é
também a de boa parte dos cariocas.
O Rio é tão lindo que perdoamos tudo.
Perdoamos as praias poluídas, o lixo nas ruas, as enchentes, o asfalto
esburacado, o medo de parar nos sinais, o medo de estacionar nas ruas, a falta
de educação no trânsito, a deselegância natural dos cariocas, os camelôs, a
precariedade dos serviços, a desatenção dos governantes, o metrô superlotado, a
ladroagem dos taxistas, a cracolândia.
Aprendemos a conviver com as nossas mazelas – tantas que, de um jeito meio carioca de
encarar a vida, talvez nem tenham mesmo solução. Basta um esplendoroso
amanhecer na Lagoa ou um pôr-do-sol no Arpoador para arrancar suspiros dos
nossos corações e trazer de volta a sensação arrebatadora de como é bom viver
aqui, apesar de tudo.
E a certeza de que nossa cidade é incomparável e daqui
não saio, daqui ninguém me tira. E assim, sucessivamente, vamos esquecendo de
todo o resto, vivendo na superfície e seus desdobramentos, sem nunca mergulhar
fundo. Quem sabe as coisas um dia se ajeitem? Afinal, Deus não é só brasileiro.
Ele é carioca!
No entanto,
ciclicamente as chuvas retornam com seu choque violento de realidade.
Abrem feridas físicas, visíveis, palpáveis, escancaradamente abertas. Mostram a
cidade feia, enlameada, alagada, sem luz, salpicada de gente sofrida tentando
sobreviver. O verão é o nosso fatídico “dia da marmota” que, ano após ano, nos
toma de assalto, sem aviso.
Vivemos tudo de novo, o primeiro dia do resto das
nossas vidas: as ruas se enchem de água barrenta e morros deslizam abrindo
rasgos de desgraça por todos os cantos. Ficamos ilhados novamente e, nessa
hora, não há chope que ajude a esquecer, embora muitos de nós tentem.
Um hiato
sonoro se instala, como o da reportagem do Fantástico sobre as chuvas de 2010,
quando não houve sequer narração em off, tamanha a intensidade das imagens
exibidas. Nossa privilegiada topografia – montanha e mar – é, também, nossa
maior tragédia. E a nossa alienação – ainda que seja uma alienação “do bem” -,
mostra-se frágil, quase grotesca. Mostra-se fantasiosa e – porque não? -
predatória.
Procuram-se culpados, questionam-se prefeitos,
secretários de meio-ambiente, o Governador, culpa-se o povo que joga lixo nas
ruas, que não abandonou suas casas nas encostas condenadas. No fundo, a culpa
fica quicando por aí, sem cair no colo de ninguém, simbolizando a omissão de
todos nós. E fica a sensação de que
vivemos anestesiados pela beleza de uma cidade mergulhada em problemas tão
profundos, que parece não haver, de fato, solução possível. Depois da revolta,
vem a onda de solidariedade para ajudar os desabrigados e tentar curar as
feridas. Fazemos piada, bradamos “imagina na Copa?”, e vamos em frente.
Com o sol outonal brilhando e provocando uma
luminosidade encantadora na cidade, a maioria dos cariocas se esquecerá
novamente das imagens tristes repetidas mais uma vez em todas as telas
possíveis. Seguiremos com nossas vidas.
A cidade mais uma vez sacudirá a poeira
e abrigará Olimpíadas, Copa do Mundo, Jornada Mundial de Juventude, Rio Open, e
sabe-se mais quantos eventos no futuro – defendendo sua imagem mundial de pólo
de belezas naturais, criatividade, música, cultura, arte. Porque seus
dirigentes pensam grande, apesar da falta de garantias de que tudo vai
funcionar e dar certo. Será esta uma grande vantagem – ou nossa maior desgraça?