O
século 20, que se prolonga no 21, foi qualificado como era dos
extremos. Uma característica do seu extremismo é a generalizada
presença e a propagação da violência, cujos efeitos visualizamos
no impacto de sua repercussão globalmente difundida pelos meios de
comunicação e multiplicada pelo efeito irradiador da era digital.
Confrontamo-nos com a onipresença da violência ao tomar
conhecimento do que se passa em escala larga e letal na Síria ou, de
modo mais circunscrito, com os black blocs, que a inseriram em
manifestações de rua até então pacíficas em cidades do Brasil,
este ano.
Violência
é palavra que provém do latim, tem a sua origem em vis, força, na
acepção de tratar com força alguém, ou seja, coagi-lo,
configurando uma agressão e um abuso, donde o sentido de violentar.
No mundo contemporâneo a extensão da força viu-se multiplicada
pela técnica, que a instrumentaliza de maneira extraordinária.
Armas de destruição em massa, drones, armamentos mais ou menos
sofisticados na ação de criminosos e suas redes - como o Primeiro
Comando da Capital (PCC) - ou terroristas de várias vertentes são
exemplos de como os implementos da violência estendem seus efeitos.
São
múltiplas as proteiformes manifestações de violência, de que são
exemplos a racial, a sexual, a xenófoba, a urbana e a rural, a
tortura, a proveniente de fundamentalismos religiosos e políticos.
Há a violência passional, impulsiva, mobilizada por medo ou ódio;
e a violência calculadora, alimentada pela hostilidade, mas que
racionaliza a ação para torná-la mais eficaz. É por esse motivo,
dada a presença da violência no correr da História, que existem
distintas reflexões que buscam explicá-la como sendo fruto da
natureza humana, da ignorância, da luta de classes, do rancor, da
revolta contra a injustiça, a corrupção, a hipocrisia.
A
generalização da violência na era dos extremos converge com visões
e perspectivas que a glorificam e a justificam como liberadora e
regeneradora. O fascismo, ao se contrapor à democracia e ao papel do
diálogo na vida política, exaltou-a e sustentou os méritos do
belicismo. Na esquerda, a clássica diferença entre reformistas e
revolucionários é a de que aqueles se norteiam pela mudança por
meios pacíficos e estes se guiam pela aceitação e afirmação da
violência revolucionária como caminho para mudanças, tendo em
vista, na lição de Marx, que a violência é a parteira da
História.
A
violência, individual ou coletiva, no seu exercício estabelece,
como aponta Sergio Cotta, uma diferença radical entre o violento e
os outros, que se tornam objeto de uma despersonalização impeditiva
da coexistência, cabendo apontar que é da natureza da violência
não se sujeitar aos parâmetros das normas e da proporcionalidade
que caracterizam o Estado de Direito. Com efeito, a violência, por
princípio, decepa qualquer possibilidade de diálogo e se contrapõe
às regras do Direito que pressupõem a igualdade perante a lei e a
imparcialidade do julgamento. Por isso a prática da violência fere
a dignidade da pessoa humana e se opõe à democracia, que postula a
importância da comunicação e dos debates que fazem a mediação
das diferenças na busca de um curso comum da ação.
A
crítica implacável da democracia, de suas normas e seus valores
caracteriza a obra de Carl Schmitt, pensador e jurista alemão de
indiscutível, porém controvertida originalidade, que foi um dos
coveiros da República de Weimar e integrou os quadros do nazismo.
Ele se dedicou a rejeitar o papel das normas jurídicas e éticas na
compreensão do que é a política. Postulou a sua autonomia,
afirmando que a sua singularidade é dada pela clareza da distinção
amigo/inimigo. O inimigo, para Schmitt, uma noção pública, é quem
nega, na situação concreta, o modo de vida do seu oponente. Por
isso deve ser repelido e combatido. A identificação do inimigo é
uma decisão existencial não balizada por normas e sempre comporta
na sua prática a possibilidade de sua eliminação física, que é
inerente à lógica do combate configurado, na obra de Schmitt, pela
absolutização da dicotomia amigo/inimigo.
Esse
entendimento dicotômico e excludente da autonomia da política
estimula a justificação da violência e merece registro porque a
obra de Schmitt, com seu brilho satânico, continua fascinando não
apenas a direita, mas significativas correntes da esquerda. Essas
correntes encontram nos seus argumentos, como aponta Richard
Bernstein em livro recente (Violence, 2013), elementos para
questionar os méritos do normativismo de inspiração kantiana e do
potencial para a convivência coletiva da democracia deliberativa e
participativa e o papel da razão na tomada de decisões políticas,
defendida, por exemplo, por Habermas.
A
reflexão de Hannah Arendt e a diferença que ela estabelece entre
poder e violência representam uma válida denegação da postura de
Schmitt. É, para ela, um equívoco conceitual e prático fundir
poder e violência. A violência não cria poder, destrói poder.
Basta ver o que ocorre na Síria.
O
poder resulta da capacidade humana de agir em conjunto e do concordar
de muitos com um curso comum de ação, o que requer persuasão,
palavra e debate, e não a intransitividade despersonalizada da
violência. O poder, nesse sentido, é um conceito horizontal
sustentado pela liberdade de associação e manifestação, cujo
potencial se amplia na era digital por meio das redes e que enseja o
empoderamento da cidadania. As instituições políticas são
materializações do poder gerado pela ação conjunta, que se
deteriora quando perde o lastro do apoio popular.
É
por essa razão que a violência não só destrói o poder das
instituições, como compromete a geração de poder, o que ocorre
quando ela se insere, por exemplo, pela ação destrutiva dos black
blocs na dinâmica das manifestações.