Resiliência – Habilidade que uma pessoa desenvolve para resistir,
lidar e reagir de modo positivo em situações adversas.
Desde que me mudei para um bairro verdadeiramente silencioso, comecei a reparar muito mais na sonoplastia ao meu redor. Além de, claro, me deslumbrar com a novidade do canto de vários passarinhos, novos vizinhos muito próximos, passei a reparar também nos sons produzidos pelas pessoas. É curioso porque quando se mora em um apartamento em uma região não tão silenciosa, os sons produzidos pelas pessoas em geral não incomodam tanto.
Se alguém resolveu pendurar um prego meio fora de hora não chega a ser uma tragédia – afinal, que nunca na vida fez algo semelhante? Uma festa no play do prédio até altas horas é rotina imposta pelas circunstâncias – e quem tem filho pequeno e nunca promoveu um evento barulhento que atire a primeira pedra. De qualquer forma, a vida passada em elevadores e repartições tão próximas umas das outras vai se ajambrando da melhor maneira possível, e a rotina de acontecimentos nos torna um pouco anestesiados a uma certa quantidade de chateações.
Quando se passa a viver em um canto em que o principal atributo natural é o silêncio, de repente tudo se transforma. O ensaio da banda no vizinho dá para aguentar, claro, música é vida, e quem tem uma pré-adolescente em casa jamais poderá dizer “desta água não beberei”. Ainda mais uma pré-adolescente filha de um guitarrista. A vida segue deixando claros e nítidos os horários do lixeiro, os latidos dos cães da vizinhança, o vai-vém dos vizinhos que possuem portões automáticos, o mau-jeito nas manobras em dias de chuva na ladeira escorregadia, uma ou outra festinha até mais tarde, alguns passantes mais animados, sem que isso se torne um transtorno.
Faz algumas semanas, a rotina mudou. Instalou-se na vizinhança uma grande obra. Todos os dias – sem trégua, faça sol ou chuva, seja dia de semana, dia santo ou feriado, – quando o relógio se aproxima das oito horas da manhã uma legião de profissionais da área da construção civil me presenteia com uma coleção de sons totalmente novos, que vão de marretadas e serras elétricas a gargalhadas e gritos entusiasmados, além de agudos persistentes vindos de rádios de música e de telefonia.
A primeira sensação, ao acordar com a barulheira às oito da manhã num domingo chuvoso (é isso mesmo, um domingo chuvoso daqueles clássicos), é de incredulidade. Não, isso vai durar uns 10 minutos no máximo, claro, deve ser algo pontual, um engano.
Mas, quando o barulho não pára,e piora, dando sinais de que os trabalhos seguirão dia adentro, vai tomando conta do corpo um misto dos personagens de Michael Douglas em Um dia de Fúria e Glenn Close em Atração Fatal. A coisa piora ainda mais quando o marido segue dormindo candidamente e insinua que você está exagerando.
Passada a indignação inicial, vem a sensação de impotência, mesmo. De um segundo para outro, você abandona os pensamentos destrutivos e incorpora a resiliência, sem saber exatamente quem está certo ou errado e qual a melhor maneira de agir. Vem a turma do deixa disso e você procura, desesperadamente, a Poliana que existe dentro de você. Encontro a Poliana. Ela é fruto, invariavelmente, do cenário de desrespeito, bagunça total e falta de cortesia e educação que nos rodeia diariamente, e que nos confunde. A ponto de nos acostumamos a ser mal tratados e desrespeitados.
É hábito não reclamar do que nos incomoda – porque simplesmente ultrapassou o limite que cabe ao outro e nos invade o território. Reclamar nos transforma instantaneamente em chatos, intolerantes, malas sem alça. Melhor ficar quieta, não atrapalhar o bom (?) andamento das coisas, não criar conflitos. Mas em nome do que, exatamente? E beneficiando quem? Que gentileza é essa que esperam de mim, e que não gera gentileza em retorno?
Não gosto do lugar de “mala”, claro, mas acredito na defesa de alguns limites essenciais para que a dignidade de cada pessoa seja exercida em sua plenitude no convívio social – e pleno não significa irrestrito.
Alguns limites de bom senso em reconhecimento à autonomia de cada um na verdade nos libertam. É nos diferenciam dos ogros. Naquele domingo chuvoso, até a noite resistiram os sons indesejáveis vindos do canteiro de obras. E eu resisti bravamente ao desconforto, pensando: calma, calma. Não se precipite. Medite. Respire. No dia seguinte – feriado de São Jorge – a trupe voltou e recomeçou a barulheira pontualmente às oito da manhã. Mas a tortura não durou muito. Uma vizinha decidiu abandonar a Poliana e chamou a polícia.
Em pouco tempo os operários foram para casa descansar. E pude finalmente dormir até mais tarde, feliz por não ser a única “mala” da rua.