Ao desejarmos realidades diferentes,
questionamos
- até sem perceber -
o que nos que faz ansiar por um
mundo idealizado
Pense um instante. E se você não
tivesse feito as opções que fez até hoje e, em consequência,
vivido experiências diferentes? Ainda assim você seria como é,
pensaria da mesma maneira, terias as mesmas faltas e nutriria os
mesmo desejos que cultiva? Enfim: seria a mesma pessoa que neste
instante está lendo este texto? Difícil dizer. Ainda assim, parece
inevitável vez ou outra pensarmos o que teria sido de nós se
tivéssemos aceito aquela proposta há alguns anos, dito “não”
em vez de sim (ou vice-versa), marcado o “x” em outa coluna,
escolhido outra companhia, outras palavras, outros caminhos. Citando
apropriadamente o escritor Redwald Hugh Trevor-Roper (1914-2003), em
History and imagination, o psicanalista britânico Adam Phillips
escreve: “A história não é meramente o que aconteceu; é o que
aconteceu no contexto daquilo que poderia ter acontecido”. Em seu
livro mais recente, O que você é e o que você quer ser, o autor
trata dessas “possíveis outras vidas” que nos acompanham, às
vezes mais de perto, às vezes menos, evocando os riscos que não
corremos e as oportunidades que não nos foram oferecidas (ou que
simplesmente evitamos).
Para o ensaísta, ex-diretor do
serviço de psicoterapia do Hospital Charing Cross, em Londres, a
vida mental “revela vidas que não estamos vivendo, que deixamos
passar em branco, que poderíamos ter, mas que, por alguma razão,
não temos”. E, a partir disso, fato é que sempre fantasiamos
vivências, coisas e pessoas ausentes em nossas vidas – ainda que
nem sempre saibamos exatamente quais sejam elas e muito de nossas
projeções contornadas pela imaginação confiram coloridos diversos
da realidade às situações. A todo o momento, o cinema e a
literatura falam desse imaginário que ronda o ser humano. A ausência
daquilo que precisamos (ou pensamos que precisamos) nos angustia.
Não raro, nos consultórios de
psicólogos e psicanalistas aparece a inquietude traduzida em queixas
de tristeza e irritação. Cabe ao par analítico desvendar pistas
para compreender o que sustenta os sintomas e, assim, estabelecer
conexões que façam surgir sentidos. Em seu livro, o autor fala do
limite que se impõe nessa luta diária travada – com o outro e com
o mundo – na tentativa de fazer com que desejos sobrevivam. Nessa
faina constante, muitos se apegam ao “mito do potencial”, capaz
de transformar a existência de uma pessoa num perpétuo “vir a
ser” que não desabrocha e reproduz a sensação de incompletude.
Não parece difícil identificar na maioria dos círculos sociais
pessoas que aparentemente sabem ter (e talvez tenham) condições de
realizar algo, mas se perdem em labirintos de promissoras promessas.
Na prática, mantém a ilusão de que é possível resguardar-se de
frustações imposta pela realidade nem sempre confortável, mas com
papel tão fundamental no processo de amadurecimento psíquico.
Para tecer essas reflexões e falar
da inexorável lacuna existente entre aquilo que queremos e o que de
fato podemos ter, Adam Phillips recorre às ideias de princípio do
prazer e princípio da realidade, apresentadas por Freud em 1911, no
artigo “Formulações sobre os dois princípios de funcionamento
mental”. “Esse suposto desajuste é a origem da nossa experiência
de perda, bem como a origem da ação política engajada; como se
acreditássemos na existência de um mundo em outro lugar, repleto
daquilo que Freud chama de ‘satisfação completa’ e Camus
chamaria de ‘um mundo mais justo’”.
Segundo o autor, qualquer ideal,
qualquer mundo desejado, é uma forma de perguntar qual é o tipo de
contexto em que estamos vivendo que faz o universo ideal uma solução.
“Nossas utopias nos dizem mais sobre as vidas vividas e suas
privações do que sobre nossas vidas sonhadas”, escreve. Afinal,
são nossos desejos que estabelecem conexões entre o ser e o vir a
ser. Para que esse processo se dê de maneira saudável é
fundamental lidar com as perspectivas de frustração. Para Freud, é
somente ao passarmos por estados de privação que podemos “alucinar”
o que queremos – nos permitimos imaginar a realização do desejo,
dando início à elaboração que se insere justamente como
pré-condição para a elaboração.
Mas antes de falar em satisfação,
evocando personagens clássicos da tragédia, como Rei Lear, Otelo e
Mccbeth, heróis que fizeram “ideia errada” do que almejavam,
Phillips faz um alerta: se faz necessário recuperar a capacidade de
nos frustrarmos: “É preciso lutar contra as tentativas de roubo
dos nossos desejos antes mesmo que nós os percebamos”. A boa
notícia é que sim, a satisfação é possível. Provavelmente não
completa, não incondicional, não definitiva – e certamente não
da forma como (arrogantemente) decidimos um dia que seria. Mas é
possível; frágil, no entanto passível de cuidadosa e constante
reconstrução.