Um
amigo meu, cultíssimo, tem um filho muito "conectado" à
internet. E o menino disse a ele: "Pai, você sabe tudo que já
aconteceu, mas não sabe nada do que está acontecendo". O pai,
como todos nós, embatucou. A mutação cultural dos últimos anos
foi tão forte, a turbulência no mundo pós-industrial dissolveu
tantas certezas, que caímos num vácuo de rotas.
Artistas
e pensadores vivem perplexos - não sabem o que filmar, escrever,
formular. Sinto em mim mesmo como é difícil criar sem esperança ou
finalidade. Como era gostoso nosso modernismo, os cinemas novos, os
movimentos literários, as cozinhas ideológicas. Os criadores se
sentiam demiurgos falando para muitos. Sei que, neste exato momento,
jovens filhos da web, os "hackers" da arte devem estar
rindo de mim. Por isso, lembro a frase de Drummond: "Cansei de
ser moderno, quero ser eterno". "Frase manjada", dirão
meus inimigos. Tudo bem, mas sinto muita falta do tempo em que alguma
"síntese", mesmo ilusória, nos era oferecida. Aí, a
"contemporaneidade", esse "faz-tudo" do novo
vocabulário, inventou a "utopia da distopia". Nada como
uma boa distopia para saciar nossa fome de certezas. Vá a qualquer
exposição de arte e veja o "conceito" ou a "narrativa"
(outras palavras de mil utilidades) das obras: "O futuro vai ser
uma bosta". E os artistas vibram de orgulho, radiantes como
profetas do nada. A fruição poética é impedida, como se o prazer
fosse uma coisa reacionária, "alienada", nos levando a
ignorar o "mal do mundo". Há uma encruzilhada de
linguagens, uma mutação no pensamento.
As
palavras que eram nosso muro de arrimo foram esvaziadas e ficamos à
deriva. Por exemplo, "futuro". Que quer dizer? Antes, era
visto como um lugar a que chegaríamos. Agora, no lugar de "futuro",
temos um presente incessante, sem ponto de chegada. Pela influencia
do avanço tecnológico da informação e pelo mercado global, foram
se afastando do grande público as criações artísticas e
literárias, as ideias filosóficas, os valores. "Toda aquela
dimensão espiritual chamada antigamente de cultura que, ainda que
confinada nas elites, transbordava sobre o conjunto da sociedade e
nela influía, dando uma razão de ser para a existência" -
escreveu Vargas Llosa. Passamos a viver diante de telas - ou TV ou
"games" que nos matam a fome de sentido. Surgiu uma
"segunda vida" digital e audiovisual que nos afasta do
antigo vazio da realidade misteriosa. Nas telas, nos games, nossa
existência se explica; é só seguir as regras do jogo. Agora, na
falta das "grandes narrativas" do passado, estamos a
idealizar irrelevâncias, porque ali pode haver pistas para novas
"verdades" a desvelar.
Nunca
tivemos tantos criadores, tanta produção cultural enchendo nossos
olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. A aura
deslizou da obra para o próprio autor. Há uma grande vitalidade
neste cafajestismo poético, enchendo a "web" de grafites
delirantes. Não sei em que isso vai dar, mas o tal "futuro"
chegou. Talvez este excesso de "irrelevâncias" esteja
produzindo um acervo de conceitos "relevantes", ainda
despercebidos. Podemos nos arriscar ao erro com mais alegria; mas
isso não pode justificar um desprezo pela excelência. As tentativas
de "grande arte" são vistas com desconfiança, como
atitudes conservadoras, diante da cachoeira de produções que
navegam no ar. Isso me lembra o tempo em que achávamos que o "fluxo
da consciência", "the stream of consciousness" ou o
discurso psicótico, continha uma sabedoria insuspeitada.
Hoje
há uma espécie de presente eterno, que esqueceu o passado ou as
influências dele. Como se crianças nascessem por geração
espontânea, sem pai nem mãe. Uma psicanalista me disse que estão
todos desesperados na profissão porque os pacientes não tem mais
interioridade. Não têm sobre o que refletir. A psicanálise está
diante de um tipo de subjetividade inesperada. Nas artes, o mesmo. Na
literatura nova atual, sente-se que a busca não é só de um tema ou
assunto, mas que a preocupação maior é com "como"
escrever. Como ser "contemporâneo"? Como buscar um sentido
para a falta de sentido? A própria superficialidade ou talvez a
vulgaridade, a irrelevância sejam relevantes - acham. A irrelevância
é buscada. Temos de ter um "não enredo", um "não
final", uma "não explicação" buscada. A utopia da
distopia. Há livros cultuados na literatura contemporânea que são
absolutamente insuportáveis, mas que são vendidos (e lidos?) para
milhões que acham aquilo arte "da hora". É o difícil
superficial, o óbvio disfarçado de profundo.
Aliás,
a própria crítica está intimidada, porque "julgar" algo
pode denotar que o sujeito que ousou fazê-lo teria opiniões
conservadoras, que ele seria um crítico "estraga prazeres",
um intrometido. Será que houve a morte da "importância"?
Ou ela seria justamente esta explosão de conteúdos e autores? O
"importante" seria agora o quantitativo? Não sei; mas, se
tudo é "importante", nada o é. A importância de uma obra
reside no grau de decifração da vida de seu tempo e para onde ela
aponta, mesmo no túnel sem luz. Se olharmos as obras primas de,
digamos, Jan van Eyck, o gênio holandês, vemos ali todo o espírito
da Idade Média revelado nos detalhes mais banais, mesmo nas
encomendas de príncipes ou cardeais.
Contudo,
é preciso que esses tópicos sejam discutidos, pois na tal conversa
do pai erudito com o filho conectado, a resposta do pai poderia ser:
"Você acha que sabe tudo que está acontecendo e nada sabe
sobre o que já aconteceu".
Por
isso, dou uma pequena contribuição ao assunto: tenho um filho de 13
anos. Eu, zeloso pai, botei o Quarteto de Cordas opus 133, de
Beethoven, para que ele ouvisse um momento máximo da história da
música. Ouviu tudo atentamente enquanto, no ritmo exato do quarteto,
jogava um "game" no Xbox. Beethoven e o "game" se
uniram em harmonia. Talvez haja futuro.