Tendo sido importante, a
memória dela se conecta
com praticamente todas as vivências do filho
Aparecem notícias de que
um cientista russo foi queimando neurônio por neurônio no cérebro de um
paciente que queria se livrar das memórias de sua mãe que o atormentavam.
Finalmente, bingo, o paciente nem sabia mais que havia tido mãe! O cientista
queimara o "neurônio-chave" da lembrança de mãe.
Todo o meu prezado
ceticismo veio à tona ao ler essa notícia. Um neurônio para mãe?
Mas... Que mãe? Sua mãe da
infância, da adolescência ou a atual? A que o atormentou e a que o encantou? A
que ele comparava com inveja com a mãe de seus colegas? A que o levava ao
colégio ou a que o esquecia lá? A que usava Joy do Jean Patou nos anos 50 e
passou para Diorissimo, nos 60? A que pedia que ele a ajudasse a abotoar a
cinta? A que o espancava com o cinto? A que o seduzia e depois o abandonava? A
chantagista emocional? A mãe idealizada que convive em todos nós? O ódio dela
que ele cultivou por anos? Os mil ressentimentos entrelaçados em suas relações
com as mulheres e com a vida?
O próprio conceito de mãe,
maternidade, instinto materno, vocação maternal, matriz, a mãe gentil dos
filhos deste solo, língua-mãe, "mater ecclesiae", Santa Maria, mãe de
Deus, "alma mater", matriarcado, o indissociável conceito de filho,
filial/matriz, mamãe, mamãe, o avental todo sujo de ovo, o churrasquinho de
mãe, do Teixeirinha ("O maior golpe do mundo que eu tive na minha vida foi
quando, com 12 anos, perdi minha mãe querida" -veja no YouTube, se você
não conhece), "Minha nossa (senhora)!", mãe em outras línguas,
"motherfucker", mãe das águas Iemanjá, "É a mãe, seu...!",
matricídio?
Uma coisa é certa: essa
mãe foi de uma importância enorme na vida do sujeito/objeto dessa experiência,
senão ele nem iria pensar nela -quanto mais se sujeitar a um procedimento tão
arriscado. Tendo sido importante, sua memória se conecta com praticamente todas
as vivências que ele teve, através de vários graus de separação (diz-se que
estamos ligados a quase todas as pessoas do planeta por até seis graus de
separação: minha mãe conheceu Hitler em Berlim, na Olimpíada de 1936, logo,
estou ligado a ele por dois graus, e por aí vai).
Se assim é com pessoas,
que dirá com memórias. Uma puxa a outra porque se vinculam pelas conexões
neuronais, numa rede gigantesca.
Freud dizia que se poderia
reconstituir a vida inteira de uma pessoa a partir de um único sonho. Ele
vislumbrou o que era a rede neuronal e a complexidade que ela tem, muito antes
da neurociência e das ressonâncias magnéticas funcionais.
Eis porque não acredito na
experiência do russo. A menos que ele esteja a reproduzir o feito que deu ao
português Egas Moniz, em 1949, o primeiro prêmio Nobel que seu país recebeu: a
invenção da lobotomia como método de tratar violentos incuráveis (e
transformá-los em vegetais ambulantes). Seria a única maneira de erradicar a memória
de mãe numa pessoa para quem ela fez diferença (para o bem ou para o mal, não
importa).
Um caso típico de, como no
antigo ditado, "jogar fora o bebê junto com a água do banho".