A corrida tecnológica tanto nos faz avançar
como nos envelhece em alta velocidade
É uma sensação de perda irresistível. O homem contemporâneo sente como jamais sentiu a saudade de uma hora, um minuto atrás. Não lhe afetam apenas os fatos, como também os objetos e seu aspecto que se esvaem num átimo. Como se ele fosse um Marcel Proust dotado de um processador ultrarrápido, ou de um acelerador de partículas quânticas, identifica o passado no presente recém-chegado, o qual já lhe parece um item dos antiquários do futuro. E o futuro é o passado distante em retroação – o ulterior demônio imemorial como diria nunca mais lembrado Stéphane Mallarmé.
Vivemos, assim, a era da nostalgia instantânea. Ela resulta da corrida tecnológica e do modo como esta moldou novas formas extremamente sensíveis de viver e sentir o mundo e a passagem do tempo. São sistemas operacionais e designs de telefones celulares e computadores, entre outras engenhocas, signos e programas, que se atualizam o tempo todo, não dando tempo aos usuários de se acostumar com a novidade imediatamente anterior, e assim para trás e para diante.
A moda foi o primeiro sistema de comunicação que adotou a novidade como princípio motor – e a descartabilidade como seu contrapeso. O lançamento periódico das coleções de roupas e assessórios se atropelam para impulsionar a indústria e provocar o efeito de ultrapassagem sobre os consumidores. Diante de visualidades inédiaos – recicladas ou inventadas -, as pessoas se sentem elas próprias obrigadas a embarcar na novidade, sob pena de serem decretadas velhas e fora de moda.
A partir dos movimentos de vanguarda do século XX, as outras artes (se considerarmos moda uma forma de arte) seguiram a moda e se apresentaram como fábricas de modelos ou peças que pretendiam ser a última novidade e, dessa forma, apontar tendências. No entanto, as revoluções estéticas foram tão avassaladoras que resultaram em um ambiente de entropia, de caos e saturação de informação tão fortes que as pretensas novidades se igualaram e caíram na vala comum das velhas obras novas.
Hoje, a moda e as artes se sincronizaram e se tornaram servas do design, em especial o design de produtos tecnológicas de ponta. Os designers industriais criam objetos e aplicativos impalpáveis que se vendem como sexualmente sedutores. Nada mais “sexy” do que os produtos da Apple. O fundador da empresa, Steve Jobs, e seu designer mais talentoso, o inglês Jony Ive, elevaram a tal ponto a ânsia pelo ineditisimo, que fundaram uma espécie de religião real da arte pela arte na tecnologia. O livro Jony Ive – o gênio por trás dos grandes produtos da Apple (Companhia das Letras, 310 páginas, R$37,90, e-book: R$ 29,90), do jornalista de tecnologia americano Leander Kahney, tenta explicar como se deu a gênese desta religião que, ao pregar o último grito, instaura a obsolescência como um veneno da alma. Um veneno que se tornou a força maior da transformação da sensibilidade do consumidor.
Kahney demonstra que a atual guerra tecnológica nasceu de uma mudança de paradigma na indústria hi-tec que aconteceu dentro do campus da Apple, sua sede em Cupertino, Califórnia, quando Steve Jobs voltou a ocupar a presidência da empresa, em 1997. Embora sem formação universitária completa, Jobs era dotado de uma intuição e de um conhecimento avançado em design gráfico, especialmente em estilos de tipologia gráfica. Isso lhe permitiu determinar a forma e operação dos aparelhos que geraram a atual revolução dos dispositivos móveis com o iPod, iPhone, iPad etc. Jobs era um esteta. Acreditava que a tecnologia só avançaria se o design industrial guiasse o trabalho dos engenheiros. Até então, a produção de alta tecnologia se dava pelo lado inverso: eram os engenheiros que criavam as máquinas para depois passarem aos designers, então meros joguetes nas mãos dos engenheiros. Invertendo o processo, Steve Jobs forjou os mantras: “O design é como funciona” e “a sofisticação é a extrema simplicidade”.
Foi nesse processo de inversão evolutiva que Jony Ive elaborou, em moldes de isopor, os protótipos do iPod, do iPhone e do iPad: pensava na beleza e na funcionalidade dos objetos, criando modelos que só então passavam a ser discutidos com os engenheiros, agora reduzidos a executores. Eis a razão da excelência estética superior dos objetos da Apple. Por isso viraram objetos de culto. Há poucos meses, Jony Ive foi convidado a desenhar pela primeira vez o sistema operacional do iPhone e companhia. Ele criou os ícones planos, simples e sofisticados do IOS 7, levando para o plano do software o que ele já fazia no hardware. O resultado é de uma extrema beleza, da qual queremos quase desviar os olhos.
Serão os objetos da tecnologia de ponta o resultado de uma arte que agora mostra toda o poder e importância? Certamente sim. E mais: essas modalidades de avanço, que conjuram as estratégias mais eficazes da moda e das outras artes, levam a sensibilidade do consumidor às raias da loucura.
Transformam o descartável em antiguidade, pois, ao tornar obsoleto e inoperante o que mal havia sido uma novidade assombrosa, refugam itens que adquirem um certo miasma de aura, de aparição única de algo imediatamente distante e irrecuperável. Numa inversão do processo de descarte, à medida que refugamos objetos e atualizamos os processos de software, passamos a sentir falta e a cultuar aplicativos, sistemas e modelos do recém-passado. Se o usuário se fascina pelos novos comandos e funções, ele sente saudade dos que acabaram de sair de cena. O IOS 6 já é uma antiguidade rara, e logo abandonará todo smartphone que se preze. Será uma reles obra de arte.
O imperativo da obsolescência em alta velocidade dá origem ao sentimento da nostalgia instantânea e, com ela, o amor e o luto por aquilo que acabou de acontecer. Eis aí um sentimento novo. É como se o envelhecimento pudesse ser abreviado e experimentado em um milésimo de segundo. O fenômeno nos ensina a examinar com maior precisão a obsolescência em todos os níveis: na troca cada vez mais rápida das gerações e das pessoas, dispositivos, aplicativos, linguagens, falas e modas. Percebemos características e defeitos do aspecto do mundo em 2011 e 2012, tão diferente e velho se comparados aos de 2013, que agora abandonamos não sem certa dor passadista. Tudo se converte em “vintage” – ou, mais precisamente, em proto-retrô. A urgência pela novidade e pela morte da novidade se dá como uma erupção da alma destes tempos – ou o espírito desta falta de tempo de nossos tempos. Será que um dia o homem sentirá a nostalgia de uma era em que a eternidade parecia existir? Talvez nunca mais.