Cada vez mais pesquisas oferecem embasamento para tormarmos decisões que podem parecer apenas fruto de valores religiosos e morais
Muitas vezes parece haver um muro sólido separando a ciência com o que conhecemos hoje da religião e dos valores éticos. Falar sobre regras e princípios (ou revê-los) parece ser, em certos meios, uma atitude muito mal recebida no meio científico, como se a “busca do conhecimento e da verdade” justificasse qualquer coisa – especialmente quando se trata de estudos sobre o cérebro. Em A paisagem moral – Como a ciência pode determinar os valores humanos, o filósofo e neurocientista americano Sam Harris discute a proximidade entre ciência e religião.
No livro escrito com base em sua tese de doutorado, Harris parte da ideia de que práticas religiosas podem se tornar, em muitos casos, precursoras de atitudes marcadas pela intolerância. “À primeira vista é impossível imaginar que a maneira como experimentamos o mundo à nossa volta e percebemos a nós mesmos dependa de mudanças de voltagem e interações químicas que acontecem dentro de nossas cabeças. E, no entanto, após um século e meio, as ciências do cérebro declaram que este é precisamente o caso”, escreve.
Mas pode ser importante olhar com alguma desconfiança essa divisão. Talvez seja precipitado aceitar que a moral e os valores sociais se baseiem simplesmente na maneira como “as coisas são”. Afinal, como elas de fato são? Admitir que haja uma maneira única e correta de ser seria dar como certo que os sentidos estão postos e a subjetividade é estanque. Segundo essa lógica, em última instância, tudo o que tomamos para nortear nossas escolhas deveria se firmar naquilo que aceitamos, queremos e suportamos, sem deixar de lado os atravessamentos da cultura e o reconhecimento do fato que o sujeito está em constante processo de mudança.
Com base na ciência, origem evolucionária dos sentimentos a respeito do que é certo ou errado pode nos ajudar a entender melhor o processo inerente às decisões de ordem moral – embora esse olhar não seja suficiente. Como primatas sociáveis que somos, desenvolvemos um profundo senso do que é correto ou não. Quase que intuitivamente (entendendo aqui intuição como uma forma sutil de inteligência) enfatizamos e recompensamos a reciprocidade e a cooperação, atenuando e punindo o egoísmo excessivo e a falta de limites. Como lembra Harris, “valores se traduzem em fatos” – sobre emoções, relações sociais, impulsos de retribuição, neurofisiologia da felicidade e da dor.
Calcado na neuroética, Harris recorre ao princípio do bem-estar, a partir do qual podemos erguer um sistema de valores morais ancorado na ciência por meio da mensuração daquilo que aumenta ou diminui a satisfação – e a saúde física e mental das pessoas. Ele pergunta, por exemplo, se é certo ou errado forçar as mulheres a vestir sacos de estopa e lançar ácido em seu rosto por cometerem adultério. Não é necessário religião ou ciência de ponta para concluir que essas práticas comprometem a qualidade de vida e as possibilidades de bem-estar das mulheres e, portanto, são moralmente erradas.
Um fato curioso a ser destacado é que cada vez mais pesquisas psicológicas e neurocientíficas comprovam aquilo que aprendemos desde pequenos: é importante seguir algumas regrinhas básicas: dizer obrigado quando recebemos algo, nos colocar no lugar dos outros para tentar entender o que pensam, e dividir o brinquedo com irmãos e amigos. Isso vale na infância, mas não só. Na verdade, gratidão, compaixão e generosidade fazem bem não apenas para quem recebe, mas para aqueles que praticam essas virtudes – inúmeros estudos comprovam isso. E isso vale para as mais variadas culturas. Mesmo nas terras altas da Guiné “felicidade ainda é felicidade”, argumenta o autor. De novo, poderíamos pensar que, em muitos casos, a ciência apenas chancela aquilo que já parece óbvio.
Pode parecer fácil para religião declarar enfaticamente que atos como trair ou roubar são errados porque destroem a confiança nas relações humanas que dependem de sinceridade, fidelidade e respeito à propriedade. Quando os princípios são afetados por fardos políticos, econômicos ou ideológicos, então a situação pode mudar um pouco de figura.
A ideia apresentada por Harris, a respeito de uma moralidade embasada na ciência é interessante, mas como resolveremos conflitos relacionados a assuntos polêmicos como impostos, por exemplo? Ou ao fato de que pesquisas também revelam que comportamentos como fazer fofocas ou mentir podem ser benéficos para a preservação da espécie?
A paisagem moral descrita por Harris permite a existência de picos e vales – mais do que uma única resposta, que determine o certo ou o errado, para dilemas morais. O que acontece quando o direito de uns esbarra no direito dos outros? Será que mais dados científicos ajudariam a resolver esse conflito?
Viva e deixe viver, poderíamos pensar, sugere o próprio Harris. “Essa pode ser uma estratégia sábia para diminuir os conflitos, mas só se aplica quando os desafios não são muito grandes ou as consequências de nosso comportamento, incertas”, afirma. Segundo ele, dizer que “mais dados científicos não ajudariam a resolver o conflito” é simplesmente afirmar que nada ajudará, pois a única alternativa é argumentar sem utilizar fatos.
“Concordo que nos encontramos nessa situação de tempos em tempos, muitas vezes a respeito de temas econômicos, mas isso não demonstra que existam as respostas certas.
“Concordo que nos encontramos nessa situação de tempos em tempos, muitas vezes a respeito de temas econômicos, mas isso não demonstra que existam as respostas certas.