É estranha, essa tal de felicidade; tão estranha que normalmente só nos referimos a ela como coisa do passado -ah, como eu era feliz- ou do futuro -ah, como vou ser feliz quando, se etc. Etc.
Tudo existe no presente: ter frio, fome, sede, estar triste, alegre ou sofrendo, menos ser feliz. Você já ouviu alguém dizer "eu sou feliz"? Você já se sentiu, em algum momento, uma pessoa completamente feliz? Mas quantas vezes olhou para trás e disse -e ouviu- que era feliz e não sabia? Pois é, quantas vezes já ouviu isso ou pensou nisso?
A felicidade é traiçoeira; quando chega, mesmo sem que se perceba, a gente muda. Fica egoísta, não presta atenção nos outros, no mundo; nada interessa, a não ser cuidar da própria vida. Mas nada como um bom sofrimento para fazer você olhar nos olhos de sua empregada de anos e se dar conta de que ela é gente; de que às vezes tem uma dor de cabeça igualzinho à sua, só que não pode ficar deitada no ar refrigerado tocando a campainha de 15 em 15 minutos e pedir um chazinho. E alguma casa deixou de ter uma carne assada, arroz e uma farofinha na mesa do jantar porque a empregada estava resfriada?
Pessoas muito felizes, além de egoístas, correm o risco de perder a curiosidade; afinal, se tudo está tão bem, qual a razão para ler um jornal, saber quais as novas descobertas da ciência, se as saias estão mais curtas ou mais longas? Faz parte da felicidade não ter grandes desejos nem grandes anseios -quando se é feliz, não se precisa de mais nada, portanto, não se sonha com mais nada. Quando se quer e se deseja, se luta, se briga, se vive.
Estando tudo bem, o melhor é ficar imóvel, rezando para que nada mude, nem o mundo nem as pessoas nem você própria. Portanto, pensando bem, a felicidade é a ser evitada.
Por que razão você se cuida, faz ginástica, mechas no cabelo, enche a casa de flores, compra um vestido novo, uma passagem no cartão de crédito, toma um uísque, se perfuma? Para ter a esperança de que aconteça alguma coisa que vai fazer de você uma pessoa mais feliz -começando pelo amor, claro; mas se acha que já é, então não faz mais nada, a não ser inventar o que vai comer no café da manhã, no almoço e no jantar. Aliás, é uma grande delícia acordar com bolo de chocolate e Coca-cola, no almoço uma montanha de pastéis de queijo e camarão com uma cerveja bem gelada, depois deitar numa rede, de preferência debaixo de um coqueiro, e à noite partir para um belo rosbife com um monte de batatas fritas, sem pensar em nada -apenas comendo, desfrutando desse que é um dos grandes prazeres da vida: o paladar, ou falando mais francamente, a gula. Pois cuidado: a felicidade engorda.
Mas pensando bem, sua vida está razoavelmente em ordem, não é mesmo? O trabalho vai bem, a família numa relativa paz -dentro do possível, claro-, a vida correndo mansa. Além disso, existem as esperanças: de que o Brasil melhore, de que seja eleito um Congresso mais razoável, de que no próximo verão dê para passar duas semanas na Bahia tomando banho de mar e bebendo água de coco: então, essas não são razões suficientes para ser feliz? Então, o que te impede de dizer, com todas as letras e bem alto, "Eu sou feliz"?
O que te impede, amiga, é a memória. Se ela não existisse, todos poderíamos ser muito felizes, ou mesmo um pouco felizes, mas sem dor. Aquela dor que te pega quando você abre uma caixa cheia de fotos de quando era criança, de uma viagem, de amigos que se perderam pela vida.
Que inveja de gente que olha para antigas fotos e lembra das coisas sorrindo, felizes. Como fazem? Como conseguem?
Só através da memória você aprende, adquire sabedoria, experiência, cultura; sem ela não há história, nem civilização, sem ela os livros não existiriam.
Mas a memória é esse mistério que torna tudo possível e só te impede de uma coisa: de ser feliz.