O homem estava pegando as chaves do carro (a mulher já tinha saído para levar as crianças à escola) quando tocaram a campainha.
Irritado, pois já se atrasara bastante, ele abre a porta:
- Sim?
O ser andrógino, belo e feio, alto e baixo, negro e louro, faz um sinalzinho dobrando o indicador:
- Vim buscar você.
Não era preciso explicar, o homem entendeu na hora: o Anjo da Morte estava ali, e não havia como escapar. Mas, acostumado a negociações, mesmo perturbado ele rapidamente pensou que era cedo, cedo demais, e tentou argumentar:
- Mas, como, o quê? Agora, assim, sem aviso sem nada? Nem um prazo decente?
O Anjo sorri um sorriso bondoso e perverso, suspira e diz:
- Mas ninguém tem a originalidade de me receber com simpatia neste mundo, ninguém nunca está preparado? Está certo que você só tem quarenta anos, mas mesmo os de oitenta...
O homem agarrou mais firme a chave do carro que acabara encontrando no bolso do paletó, e insistiu:
- Vem cá, me dá uma chance.
O Anjo teve pena, aquele grandalhão estava realmente apavorado. Ah, os humanos... Então teve um acesso de bondade e concedeu:
- Tudo bem. Eu te dou uma chance, se você me der três boas razões para não vir comigo desta vez.
(Passava um brilho malicioso nos olhos azuis e negros daquele Anjo?)
O homem aprumou-se, claro, ele sabia que ia dar certo, sempre fora bom negociador. Mas, quando abria a boca para começar sua ladainha de razões - muito mais que três, ah sim -, o Anjo ergueu um dedo imperioso:
- Espera aí. Três boas razões, mas... não vale dizer que seus negócios precisam ser organizados, sua mulher nem sabe assinar cheque, seus filhos nada conhecem da realidade. O que interessa é você, você mesmo. Por que valeria a pena ainda te deixar aqui por algum tempo?
Já narrei essa fábula em outro livro, e nele quem abria a porta era uma mulher. A objeção que o Anjo lhe fazia antes de ela começar a recitar seus motivos era:
- Não vale dizer que é porque marido e filhos precisam de você...
Muitas vezes contei essa historinha, e inevitavelmente homens e mulheres ficam surpresos e pensativos, sem resposta imediata ainda que de brincadeira.
E nós? Com que argumentos persuadiríamos o anjo visitante de ainda não nos levar?
Eles seriam falsos, inventados na hora, ou brotariam da nossa eventual contemplação - e reavaliação - da vida, e do sentido de tudo, de nossos projetos e esperanças?
Isto é, se acaso alguma vez interrompemos nossa agitação para um questionamento desses. Pois em geral nos atordoamos na agitação da mídia, da moda, do consumo, da corrida pelo melhor salário, melhor lugar, melhor mesa no restaurante, melhor modo de enganar o outro e subir.
Ainda que infimamente em nosso ínfimo posto.
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