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ATRAVÉS DE MUITOS ESPELHOS – Carolina Vigna

Três edições comemoram os 150 anos de 
Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.

Costumo dizer ao meu filho que ele não é obrigado a gostar, mas precisa conhecer de onde são as referências que vê em filmes, livros e games. Temos, então, uma sessão de “apresentação dos clássicos” que vão de Aristóteles a Madonna. Isso surgiu aqui em casa quando ele, ainda muito pequeno, me perguntou quem era Elvis Presley. A pobre criança foi submetida a dias e mais dias de videoclipes e filmes com o rei. Não deve ser fácil ser meu filho.

Não é por acaso que a citação do Google Scholar é uma referência a Sir Isaac Newton. “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes.” Precisamos desses gigantes. Precisamos dos clássicos.

Na época do Império Romano, clássico era tudo aquilo digno de ser copiado e que resiste ao tempo. Acho esse conceito divertido por dois motivos: primeiro por causa da ideia pouco familiar de que mesmo Roma Antiga tinha um antes, um “clássico” e segundo porque isso é tão enraizado em nossa cultura que baseamos a internet inteira nisso (quanto mais ocorrências ou seja, quanto mais cópias, maior relevância). Eles se referiam à Grécia Antiga, é claro, mas essa ideia pode ser traçada até o Egito e seus artistas copistas.

Essa noção de clássico tem um problema: é dominadora, branca e masculina. Clássico é também uma forma de imposição de valores. É o conquistador dizendo ao conquistado o que ele deve ou não considerar como Cultura. É bom por ser um clássico? Não necessariamente. Um dos historiadores da arte mais respeitados internacionalmente, Sir Ernst Gombrich, só para citar um exemplo, é criticado justamente por sequer falar de arte africana depois do Egito Antigo e por reduzir o Islã e a China, juntos, a um único breve capítulo. Da mesma forma, artistas mulheres são raramente mencionadas em seu best seller. Portanto, se estou partindo da ideia de clássico e estou inserida em uma cultura ocidental, você já pode rapidamente se transportar geograficamente para a Europa, convivendo com ou pertencendo à classe dominante.

Imagine que você está em um agradável passeio de barco pelo rio Tâmisa e três meninas entediadas precisam ser entretidas antes da invenção do smart phone. Se fosse eu, certamente levaria uma bronca e ficaria quieta. Sendo as filhas do vice-chanceler da Universidade de Oxford (que na ocasião ainda se chamava Christ Church College) e diretor da escola de Westminster, com certeza seria mais fácil conseguir alguém para lhes contar uma boa estória. As irmãs Lorina Charlotte, Edith Mary e Alice Pleasance Liddell, filhas de Henry George Liddell, em 4 de julho de 1862, ouviram de Charles Lutwidge Dodgson (mais conhecido por Lewis Carroll e que, na época, trabalhava em Oxford e já era amigo da família) a estória de uma menina chamada Alice. A estória precisava ser boa. E era. Um clássico.

Alice tem ainda muitas camadas de interpretações, inclusive as que dizem respeito à biografia de Carroll. O buraco do coelho, por exemplo, é uma referência à piada particular de Oxford de chamar as escadas na parte de trás do salão principal da Christ Church de “rabbit hole”. Existem interpretações matemáticas também, como por exemplo as multiplicações no capítulo A lagoa de Lágrimas:

“Deixe-me ver: quatro vezes cinco é doze, e quatro vezes seis é treze, e quatro vezes sete é… ai, ai! deste jeito nunca vou chegar a vinte!”

A explicação para isso é que estas multiplicações foram feitas em bases diferentes de 10: 4 x 5 = 12 (escrito em base 12), 4 x 6 = 13 (escrito em base 21), etc. Não, eu também não sei fazer essas contas. Copiei da internet, fala sério.

Por falar nas exatas, Calvin R. Petersen, em Time and stress: Alice in Wonderland, faz um paralelo de Alice com a teoria da relatividade de Einstein. Segundo o autor, Carroll coloca Alice como um pêndulo durante a queda no início do primeiro livro, ao se encontrar com forças opostas de gravidade. A perda de referência de um espaço-tempo compreensível é também a primeira informação que Alice tem do País das Maravilhas. Petersen afirma que seguir o coelho nos fornece pistas importantes sobre tempo e stress (stress aqui na acepção da Física, não do meu estado mental). Ele não é o primeiro a perceber esta ligação. Douglas Hofstadter, em Gödel, Escher, Bach: an eternal Golden Braid, explica a natureza paradoxal do Tempo como uma “figura metafórica de mentes e máquinas no espírito de Lewis Carroll”.

Há, claramente, uma intenção de Carroll em abordar o assunto. Desde o coelho atrasado até o Chapeleiro e seu relógio que marca a data (dia, mês e ano) e não a hora.

“Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu”, disse o Chapeleiro, “falaria dele com mais respeito.”

“Não sei o que quer dizer”, disse Alice.

“Claro que não!” desdenhou o Chapeleiro, jogando a cabeça para trás. “Atrevo-me a dizer que você nunca chegou a falar com o Tempo!”

“Talvez não”, respondeu Alice, cautelosa, “mas sei que tenho de bater o tempo quando estudo música.”

“Ah! Isso explica tudo”, disse o Chapeleiro. “Ele não suporta apanhar. Mas, se você e ele vivessem em boa paz, ele faria praticamente tudo o que você quisesse com o relógio. Por exemplo, suponha que fossem nove horas da manhã, hora de estudar as lições; bastaria um cochicho para o Tempo, e o relógio giraria num piscar de olhos! Uma e meia, hora do almoço!”

Difícil encontrar um tempo mais relativo que este.

Fica aqui a lembrança de que tanto Carroll quanto seu pai foram professores de matemática em Oxford. Ou seja, Carroll cresceu neste ambiente.

As metáforas de infância, crescimento e amadurecimento são tema recorrente em estórias dessa virada de século. Um pouco depois de Alice, Sir James Matthew Barrie escreveu Peter Pan, também inspirado em uma criança, no menino Peter Llewelyn Davies. Ser fonte de inspiração de um personagem desses não é uma carga leve e assombrou Peter por toda a sua vida, que terminou em suicídio.

O livro The Story of Alice: Lewis Carroll and the Secret History of Wonderland, de Robert Douglas-Fairhurst, narra um pouco da relação conflituosa da Alice real com a literária e entreleçamentos biográficos dela, de Carroll e outros, além da Oxford vitoriana. O livro inclui detalhes sórdidos e insinuações de pedofilia por parte do Carroll, que já me parecem sair do escopo deste artigo mas, se você tiver curiosidade, é uma boa fonte de informação.

Vladimir I. Propp, em Morfologia do conto maravilhoso, coloca o início da narrativa quando, depois da definição do espaço ou do tempo, necessariamente, um personagem toma conhecimento de algo através de outro e isto liga a função precedente à que vem a seguir. Como, por exemplo, um coelho de colete que mostra onde é uma passagem para o mundo mágico.

Essa coisa de passagem, aliás, é repetida ad nauseam na literatura desde a saída da caverna de Platão até os mais recentes, como o armário em As crônicas de Nárnia. É uma forma de apresentar ao leitor o momento de ruptura entre a “realidade” e a “fantasia” e garantir a possibilidade de retorno ao status quo dessa realidade proposta. Falo em status quo porque o objetivo original desses contos era bastante reacionário e conservador. Não se iluda: os contos maravilhosos (incluindo os de fada) foram criados com o propósito de assustar (na época eles chamavam de “educar”) as crianças para que não se aventurassem fora dos limites estabelecidos. Os contos eram apavorantes e incluíam assassinatos, mutilações, estupros, canibalismo e mais alguns alimentos para pesadelos. Pode ser difícil de perceber isso hoje em dia por conta das versões açucaradas dessas estórias, criadas pelo Disney, que acabaram se sobrepondo às originais.

Voltando à morfologia, depois da definição espaço-temporal (“era uma vez um reino” e similares) e da passagem para o mágico, temos então a chegada ou a apresentação do herói. Pode ser um evento, como um baile com uma seção de achados e perdidos cheia de sapatos, ou qualquer outro acontecimento. E, logo em seguida, um ciclo de repetições de função. A motivação dessas ações varia muito e pode ser desde um amor idealizado, ser banido de um reino ou até drogas que nos fazem mudar de tamanho. A função perseguição-salvamento é repetida até que chegue a uma conclusão. A solução do conflito, ou seja, a vitória do herói, ultrapassa diversos obstáculos, é claro, se não seria fácil demais e Hollywood não teria material suficiente para copiar. Muitas vezes estes obstáculos são proibições e a consequente transgressão da proibição. A transgressão resulta em punição ou em tragédia para, lembrando, “educar” as crianças. É comum também a utilização de intrigas compostas de informações erradas, cabendo ao herói discernir entre elas. As intrigas possuem, também, uma função “pedagógica”. E, finalmente, terminamos com uma moral.

Em Alice, o primeiro livro, por exemplo, termina com a irmã mais velha elogiando suas qualidades inocentes e pueris. Ou seja, moralmente o bom mesmo é permanecer assim.

Em tempo: não considero spoiler te contar como termina um livro de 150 anos e popular como este.

Bruno Bettelheim, em A psicanálise dos contos de fada, diz que “a tarefa mais importante e também mais difícil na criação de uma criança é ajudá-la a encontrar significado na vida”. Tenho cá minhas dúvidas se isso é verdade apenas para crianças, mas vamos prosseguir. “Para encontrar um significado mais profundo, devemos ser capazes de transcender os limites estreitos de uma existência autocentrada e acreditar que daremos uma contribuição significativa para a vida – se não imediatamente agora, pelo menos em algum tempo futuro. (…) A aquisição de habilidades, inclusive a de ler, fica destituída de valor quando o que se aprendeu a ler não acrescenta nada de importante à nossa vida. (…) Exatamente porque a vida é freqüentemente desconcertante para a criança, ela precisa ainda mais ter a possibilidade de se entender neste mundo complexo com o qual deve aprender a lidar. Para ser bem sucedida neste aspecto, a criança deve receber ajuda para que possa dar algum sentido coerente ao seu turbilhão de sentimentos. Necessita de idéias sobre a forma de colocar ordem na sua casa interior, e com base nisso ser capaz de criar ordem na sua vida. (…) A criança encontra este tipo de significado nos contos de fadas.”

Desculpem a citação enorme. Era importante.

É tão importante que vou repetir: não é no livro didático ou utilitário que a criança encontrará ferramentas para desenvolver significado em sua vida. Este significado vem através da vivência dos arquétipos que encontramos em todas as mitologias.

Volto ao Bettelheim: “Quaisquer que sejam os acontecimentos estranhos que o herói do conto de fadas vivencie, eles não o tornam sobre-humano, como ocorre com o herói mítico. Esta humanidade real sugere à criança que, seja qual for o conteúdo do conto de fadas, não são mais que elaborações fantasiosas e exageradas das tarefas com que ele tem que se defrontar, dos seus medos e esperanças.”

Perdemos humanidade quando deixamos de entender isso. Perdemos quando não somos mais capazes de diferenciar um mito do humano. Perdemos quando achamos que a magia da literatura é real e nos ameaça. Perdemos quando um segmento significativo da sociedade acredita que estórias bíblicas (só para citar um best seller) são relatos fidedignos da História Mundial e não ensinamentos ou metáforas. Ou mesmo explicações de mundo escritas para um público-alvo, na época, de analfabetos.

“Tentando fazer uma criança aceitar explanações cientificamente corretas, os pais com muita freqüência não levam em conta as descobertas científicas de como a mente de uma criança funciona. As pesquisas sobre os processos mentais da criança, especialmente as de Piaget, demonstram convincentemente que a criancinha não está apta a compreender os dois conceitos abstratos vitais de permanência de quantidade, e de reversibilidade – por exemplo, que a mesma quantidade de água atinge um ponto alto num receptáculo estreito e permanece baixa num outro largo; e que a subtração inverte o processo de adição. Até que possa compreender conceitos abstratos como este, a criança só pode vivenciar o mundo subjetivamente.

As explanações científicas requerem pensamento objetivo. Tanto a pesquisa teórica como a exploração experimental mostraram que nenhuma criança abaixo da idade escolar é realmente capaz de apreender estes dois conceitos, sem os quais a compreensão abstrata é impossível. Nos seus primeiros anos, até a idade de oito ou dez, a criança só pode desenvolver conceitos altamente personalizados sobre aquilo que experimenta. Por conseguinte, parece-lhe natural, dado que as plantas que crescem nesta terra o alimentam como o fez sua mãe com o peito, ver a terra como uma mãe ou como uma deusa feminina, ou pelo menos como sua morada.”

Mesmo tendo vontade de citar o Bettelheim inteiro, paro por aqui. Se você se interessa por esse assunto, leia o livro.

Pelo menos até o final da Era Vitoriana, a mulher podia assumir, basicamente, quatro papéis: inocente e/ou infantilizado (Alice), a ausente (como em Robinson Crusoe), a idealizada (princesas) e a poderosa que era, normalmente, a vilã (bruxas e afins). A subversão – e genialidade – de Alice começa aqui. A personagem principal é, ao mesmo tempo, inocente, poderosa e idealizada. E, principalmente, poderosa sem ser má. E isso era uma grande novidade.

As possibilidades de interpretação de Alice são tantas que é impossível cobrí-las em um único artigo, então a minha seleção foi por empatia. E uma das coisas que eu mais gosto é o jogo filosófico-linguístico.

Jacqueline Flescher, em The language of nonsense in Alice, aponta para a ligação entre linguagem e identidade. Quando Alice está atravessando o bosque onde os nomes não existem (capítulo Insetos do espelho, de Através do espelho), Alice perde não apenas seu nome mas também sua identidade. Não sabe mais quem é.

Alice encontra muitos obstáculos para se comunicar em ambos os livros. A linguagem é colocada com incongruências e com um jogo entre os sentidos literal e figurado.

Em Através do espelho, no capítulo O leão e o unicórnio, Alice conversa com o rei:

“(…) Dê uma olhada na estrada, e diga-me se pode ver algum deles.”

“Ninguém à vista”, disse Alice.

“Só queria ter olhos como esses”, observou o Rei num tom irritado. “Ser capaz de ver Ninguém! E à distância! Ora, o máximo que eu consigo é ver pessoas reais, com esta luz!”

Um pouco antes, no mesmo livro, Alice e Humpty Dumpty analisam o significado de palavras inexistentes a partir da semelhança sonora com outras:

“’Vertigiro’ é o giro vertiginosamente rápido de uma verruma. ‘Persondar’ é perfurar perscrutando.”

Alice é recheado de jogos de linguagem, lógica e semiótica. Esta é, para mim, uma das principais graças de ler Lewis Carroll. E este é um prazer adulto, de uma leitura atual, o que faz com que Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos, estivesse certo: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.”

Ludwig Wittgenstein, em Tractatus Logico-Philosophicus, propõe a construção de um sistema filosófico para distinguir entre o sense e o nonsense. Ou seja, encontrar o limite da linguagem em que o sentido se perde e se torna nonsense. Paulo Henrique Fernandes Silveira, em A lógica do nonsense em Carroll e Wittgenstein, nos diz que “o problema do nonsense é passar despercebido. O que se aprende com Allice é perceber o que há de nonsense no mundo dos adultos.”

Esta noção de que a criança leitora pode (e deve) criticar o mundo dos adultos é muito, muito valiosa. E, mesmo que não por todos os outros motivos, só por isso Alice torna-se leitura essencial na infância.

Comemorando os 150 anos de Alice, destaco três edições comemorativas: Editora 34, CosacNaify e Zahar. As três traduções (Sebastião Uchoa Leite; Alexandre Barbosa de Souza e Nicolau Sevcenko; Maria Luiza X. de A. Borges, respectivamente) mantiveram a brincadeira de Carroll de formar o nome Alice Pleasance Liddell com as primeiras letras do poema no final de Através do espelho. Imagino que não tenha sido um esforço pequeno. As três traduções, aliás, estão excelentes.

O projeto gráfico da Carolina Falcão (Zahar) é uma delícia. Os dois títulos no mesmo volume, começando um em cada capa, espelhados na encadernação. Ao virar o livro na mão, tem-se a leitura de um e de outro. As ilustrações da Adriana Peliano com colagens das originais do John Tenniel conseguem trazer o clima do texto original para uma linguagem contemporânea. As citações utilizadas neste artigo são da edição da Zahar.

Luiz Zerbini e Rosângela Rennó (CosacNaify) também utilizam a linguagem de colagem, e optam por uma das leituras possíveis de Alice, ao apontar claramente para o baralho de cartas desde o início. A edição da CosacNaify vem em dois livros separados e Luciana Facchini e Paulo André Chagas assinam o projeto gráfico. Tanto a CosacNaify quanto a 34 mantiveram a diagramação “concretista” (termo usado aqui de forma totalmente anacrônica) de alguns dos poemas.

A 34 também optou por uma caixa com dois livros e traz as ilustrações originais de Tenniel. Os livros têm ainda uma cuidadosa e elegante sobrecapa e um look’n feel perfeito. Em seu ensaio, Sebastião Uchoa Leite apresenta outras leituras possíveis, incluindo Jean Gattégno, Henri Laporte, Bertrand Russel, Géza Róheim e mais outros tantos autores, com muito mais competência do que eu sou capaz. É uma edição que certamente agradará pesquisadores e estudiosos.

Parafraseando o Gato de Cheshire, não importa que edição você escolha, desde que chegue a algum lugar.

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O autor Lewis Carroll: 
Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll (1832-1898), foi um romancista, fotógrafo, matemático e reverendo anglicano britânico. Lecionava matemática em Oxford. Seu pai, também professor de matemática e reverendo, era bastante conservador. Teve 10 irmãos e cresceu no vilarejo inglês de Croft-on-Tees. Foi inicialmente educado em casa e só foi para a escola com 12 anos. Aos 17, teve uma crise de pertússis (tosse convulsa) que, muito provavelmente, foi a responsável pelos problemas respiratórios que o acompanharam em toda sua vida. Como se não bastasse, era gago.
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