Se duro é ser mulher, bem mais duro é ser mulher
em universos onde só homens mandam.
Um homem que conheço está querendo matar uma mulher, que também conheço. Disse isso a ela mais de uma vez. E, para que não duvidasse, a cobriu recentemente de pancadas. Ela e sua irmã. É homem forte, mas para bater usa um pedaço de pau.
A casa em que ela morava com ele e a filha dos dois é dela. Foi ela quem comprou, foi ela que providenciou os eletrodomésticos, foi ela que mobiliou. Ele quer essa casa. Não lhe basta a parte que a lei lhe destina. Quer toda. Não porque precise de espaço – a casa é grande – mas para que ela fique sem nada.
A casa é localizada numa comunidade. E aí o caldo, que já não era fino, engrossa ainda mais.
Com o rosto inchado pela surra e marcas no corpo todo, ela e a irmã, também cheia de hematomas, foram à delegacia. Muito bem atendidas. O delegado era pessoa de bem, foi delicado e claro. Disse que se ela quisesse fazer recurso à lei Maria da Penha, a policia iria lá prender o homem e executar o exigido pela lei. Mas a avisou que logo depois ela seria expulsa da comunidade pelos traficantes que a controlam, como punição por ter atraído a policia. Acabaria perdendo a casa do mesmo jeito. Ela decidiu pensar.
Por que, se os traficantes mandam tão amplamente na comunidade, não pede ela às chefias da boca que a protejam, expulsando o homem que prometeu matá-la? Porque a lei dos traficantes, como antigas leis há séculos superadas, diz que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Pergunto-me por que esse raciocínio não avança, até esbarrar na conclusão óbvia: se ele matar a mulher, a polícia virá investigar e a teremos bisbilhotando no morro. Mas sei que o avanço dos raciocínios sempre foi problemático.
Se duro é ser mulher, bem mais duro é ser mulher em universos onde só homens mandam.
E a irmã apanhou por quê? Porque foi defender a outra. A cena se passou no meio da rua onde ficam, frente a frente, a casa da irmã e a casa da mulher. Voltavam juntas quando ele as agrediu.
Um jovem soldado do tráfico observava a cena. Enquanto o homem agrediu a mulher, que considera ainda objeto seu, enquanto a jogou ao chão e se preparava para atacá-la a pontapés, o jovem nada fez. Mas quando deu pauladas na irmã que foi defendê-la, o jovem avançou e, utilizando a autoridade conferida por seu pertencimento às forças armadas locais, meteu-lhe um soco, um empurrão e alguns insultos. Que não tocasse na moça, pois esta não lhe pertencia.
Que tão intrincadas e sutis são as teias dos relacionamentos sociais.
Se a casa que é motivo de tamanho conflito tivesse sido erguida uns tantos metros adiante, “no asfalto”, só uma lei teria que ser observada, o do Código Civil. Porém, bastou subir a encosta, para pertencer a um universo duplo, onde duas leis se defrontam e onde obedecer a uma significa trombar com a outra.
Dentro de ambas as leis, os dois poderiam resolver a questão abrindo mão da casa. Mas essa casa é para ambos muito mais que uma casa. É um símbolo. Para ela, migrante vinda da miséria, é a concretização da sua tenacidade e do seu esforço, a vitória na ascensão. Para ele, que nada tinha antes de conhecê-la, representa sua capacidade de submeter a fêmea a seus desejos, seu domínio de macho. E seja qual for a lei, abrir mão de um símbolo significa abrir mão de uma parte de si.