Há duas semanas tivemos uma demonstração explícita de bairrismo no encontro habitual do Café Severino, que acabou se transformando numa crônica sobre violência urbana. São Paulo seria mais violenta que o Rio?
Não se chegou a um consenso, mas a discussão, pelo menos, não gerou violência entre nós. Afinal, não estávamos no nosso café para salvar o mundo, o Brasil, uma cidade que fosse, ou mesmo aquele pequeno trecho da Rua Dias Ferreira. Era apenas o encontro habitual entre amigos!
Amigos! Assim, de maneira exclamativa, essa palavra sagrada me traz à memória versos de Camilo Castelo Branco, o escritor português mais conhecido como autor do romance Amor de Perdição. No soneto, Camilo lamenta que, apesar de contar com muitos amigos, foi visitado por apenas um a partir do momento em que ficou cego. E por que essa ausência numa hora tão crucial da sua vida? Os tais amigos justificavam:
“Que vamos nós, diziam, lá fazer? se ele está cego não nos pode ver!”.
Apesar do acento bem-humorado de Camilo, os versos traduzem uma situação dolorosa. Mas voltemos ao Severino. O Fla-Flu (podemos chamar assim?) entre paulistas e cariocas ocupou-se naquela tarde da diferença entre os cidadãos das duas cidades no que toca à manifestação entre as pessoas, que constitui o que chamamos de laços de amizade.
Desta vez foi o Flávio, paulistano que está em visita ao Rio, que proclamou:
— Carioca não é bom amigo, mas apenas boa companhia.
Essa afirmação às vésperas de um bem-vindo verão causou indignação. O Raul, que é um tanto beligerante, reagiu em cima, sem sutileza:
— Para não pular no seu pescoço, vou fingir que não ouvi o que você acaba de dizer.
Flávio não deu trégua:
— Você fala, discorda, sente-se ofendido, enche a boca para dizer que está entre amigos, mas me diga quando é que vocês se visitaram em casa? Quando foi a última vez?
Todos nós trocamos um olhar de incompreensão. Perguntei:
— Não vejo o que tem uma coisa com outra.
— A relação é óbvia — garantiu-me Flávio. — Amigo, amigo verdadeiro, significa também casa, família, presença em festa de aniversário, em enterro, em missa de sétimo dia. Tudo que transpira amor, carinho, solidariedade.
O Raul não se conformava:
— Deixa de ser bobo, rapaz! Nós nos reunimos aqui há muitos anos. Visita doméstica é para as mulheres!
Já viram que o Raul voltava ao seu bairrismo e machismo exibidos na discussão sobre violência de duas semanas atrás. Flávio continuou:
— Amigo de café, de bar, de praia, não é amigo. Pode ser no máximo, repito, uma boa companhia. Em São Paulo as pessoas se visitam, as mulheres dos amigos também se tornam amigas, os filhos de uns e de outros brincam juntos, se relacionam. Tenho certeza de que muitos de vocês nem sequer sabem onde mora cada um desses “grandes” amigos.
— Temos uma visão mais democrática do que seja amizade — garantiu o Raul, meio enfezado.
— Pois a minha visão é radical. Vocês chamam de amigo a quem mal conhecem. Outro dia li uma declaração do escritor inglês E. M. Foster. Ele escreveu: “Nunca tive de escolher entre trair um amigo e trair meu país, mas se isso um dia acontecer, espero ter a coragem de trair meu país!”.
— Deus do céu — exclamei eu —, a declaração é linda e forte. E, literariamente, um luxo.
— Pois é o que eu acho da amizade. Mais importante que a pátria, mais importante que o amor.
E por aí foi a conversa no Café Severino. Depois de nos separarmos na santa paz, fui dirigindo o carro pelo Leblon, familiarizando-me com as obras do metrô. Liguei o rádio e entrou a linda voz de Adriana Calcanhotto cantando a última parte de uma de suas mais inspiradas canções:
“Cariocas nascem bambas
Cariocas nascem craques
Cariocas têm sotaque
Cariocas são alegres
Cariocas são atentos
Cariocas são tão sexy
Cariocas são tão claros
Cariocas não gostam de sinal fechado.”
Pensei: essa gauchinha é danada!
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Durante o jantar, comentei com a minha mulher:
— O Raul faz aniversário no sábado. O que você acha de a gente ir até lá dar um abraço nele?
— Acho ótimo. Assim fico conhecendo a mulher dele.