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O NÓ DO AFETO - Eloi Zanetti

Era um reunião numa escola. A diretora incentivava os pais a apoiarem as crianças, falando da necessidade da presença deles junto aos filhos. Mesmo sabendo que a maioria dos pais e mães trabalhava fora, ela tinha convicção da necessidade de acharem tempo para seus filhos.

Foi então que um pai, com seu jeito simples, explicou que saía tão cedo de casa, que seu filho ainda dormia e que, quando voltava, o pequeno, cansado, já adormecera. Explicou que não podia deixar de trabalhar tanto assim, pois estava cada vez mais difícil sustentar a família. E contou como isso o deixava angustiado, por praticamente só conviver com o filho nos fins de semana.

O pai, então, falou como tentava redimir-se, indo beijar a criança todas as noites, quando chegava em casa. Contou que a cada beijo, ele dava um pequeno nó no lençol, para que seu filho soubesse que ele estivera ali. Quando acordava, o menino sabia que seu pai o amava e lá estivera. E era o nó o meio de se ligarem um ao outro.

Aquela história emocionou a diretora da escola que, surpresa, verificou ser aquele menino um dos melhores e mais ajustados alunos da classe. E a fez refletir sobre as infinitas maneiras que pais e filhos têm de se comunicarem, de se fazerem presentes nas vidas uns dos outros. O pai encontrou sua forma simples, mas eficiente, de se fazer presente e, o mais importante, de que seu filho acreditasse na sua presença.

Para que a comunicação se instale, é preciso que os filhos 'ouçam' o coração dos pais ou responsáveis, pois os sentimentos falam mais alto do que as palavras. É por essa razão que um beijo, um abraço, um carinho, revestidos de puro afeto, curam até dor de cabeça, arranhão, ciúme do irmão, medo do escuro, etc.

Uma criança pode não entender certas palavras, mas sabe registrar e gravar um gesto de amor, mesmo que este seja um simples nó.




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O PODER DO SER AMADO - Gilles Deleuze

 É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como  uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. 

O amado implica, envol­ve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, in­terpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um.
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EU ENTRO NESSE BARCO... - Poesia - Caio Fernando Abreu


Eu entro nesse barco, é só me pedir.
Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou.
Faz tempo que quero ingressar nessa viagem, mas pra isso
preciso saber se você vai também. Porque sozinha, não vou.
Não tem como remar sozinha, eu ficaria girando
em torno de mim mesma.Mas olha, eu só entro nesse barco
se você prometer remar também!
Eu abandono tudo, história, passado, cicatrizes.
Mudo o visual, deixo o cabelo crescer, começo a comer direito,
vou todo dia pra academia. Mas você tem que prometer
que vai remar também, com vontade!
Mas você tem que remar também.
Eu desisto fácil, você sabe.
E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos,
mas eu entro nesse barco, é só me pedir.
Perco o medo de dirigir só pra atravessar
o mundo pra te ver todo dia.
Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir.
Mas a gente tem que afundar junto
e descobrir que é possível nadar junto.
Eu te ensino a nadar, juro!
Você tem que me prometer
que essa viagem não vai ser a toa,que vale a pena.
Que por você vale a pena.
Que por nós vale a pena.
Remar.
Re-amar.
Amar.
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Contos, Crônicas e Poesias






PROPORÇÕES – Poesia 


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O AMOR - Andrè Comte-Sponville

A definição que acabo de propor deve muito a uma outra, que é de Spinoza. Ei-la: "O amor é uma alegria que a idéia de uma causa externa acompanha."
Amar é regozijar-se ou, mais exatamente (pois o amor supõe a idéia de uma causa), regozijar-se com. Regozijar-se ou gozar, dizia eu; mas o prazer só é um amor, no sentido mais forte do termo, se regozija a alma, o que acontece especialmente nas relações interpessoais.

A carne é triste quando não há amor ou quando só se ama a carne. Isso dá razão a Spinoza: o amor é essa alegria que se soma ao prazer, que o ilumina, que o reflete como no espelho da alma, que o anuncia, o acompanha ou o segue, como uma promessa ou um eco de felicidade. Será esse o sentido comum da palavra? Parece-me que sim, ou pelo menos que isso a reforça numa parte essencial, que é sua melhor parte. Se alguém lhe disser: "Fico feliz com a idéia de que você existe"; ou então: "Quando penso que você existe, fico feliz"; ou ainda: "Há uma felicidade em mim, e a causa da minha felicidade é a idéia de que você existe…", você tomará isso por uma declaração de amor, e terá razão, é claro. Mas terá também muita sorte: não apenas porque uma declaração spinozista de amor não é para qualquer um, mas também e principalmente porque é uma declaração de amor, ó surpresa, que não lhe pede nada! Bem sei que quando se diz "eu te amo" também não se pede nada, aparentemente.

Tudo depende no entanto do amor de que se trata. Se o amor é falta, dizer "eu te amo" é pedir não apenas que o outro responda "eu também", mas é pedir o outro mesmo, já que você o ama, já que ele lhe faz falta e já que toda falta, por definição, quer possuir! Que peso para aquele ou aquela que você ama! Que angústia! Que prisão! Regozijar-se, ao contrário, é não pedir absolutamente nada: é celebrar uma presença, uma existência, uma graça!

Que leveza, para você e para o outro! Que liberdade! Que felicidade! Não é pedir, é agradecer. Não é possuir, é gozar e se regozijar. Não é falta, é gratidão. Quem não gosta de agradecer, quando ama? Quem não gosta de declarar seu amor, quando está feliz? E por isso mesmo é dom, é oferenda, é graça em troca. Quem não gosta de ser amado? Quem não se regozija com o regozijo que proporciona? Por isso o amor nutre o amor e o dobra, tanto mais forte, tanto mais leve, tanto mais ativo, diria Spinoza, quanto é sem falta.

Essa leveza tem um nome: é a alegria. E uma prova: a felicidade dos amantes. Eu te amo: tenho alegria por existires.

Sob sua forma spinozista, esse gênero de declaração pode parecer estranho. Mas o que importa a forma e o que importa o spinozismo? Há outras maneiras, mais simples, mais freqüentes, de dizer a mesma coisa.

Por exemplo esta: "Obrigado por existir, obrigado por ser o que você é, por não faltar ao real!" É declaração de amor saciado. Ou simplesmente um olhar, um sorriso, uma carícia, uma alegria… A gratidão, dizia eu, é a felicidade de amar. Digamos mais: é o próprio amor, como felicidade. O que lhe faltaria e por quê, se ele se regozija com o que é, se é esse próprio regozijo? Quanto à "vontade que o amante tem de se unir à coisa amada", escreve Spinoza criticando aqui a definição cartesiana, "ela não exprime a essência do amor, mas sua propriedade", aliás de maneira bastante obscura e equívoca:
Cumpre observar que, ao dizer que essa propriedade consiste na vontade que o amante tem de se unir à coisa amada, não entendo por vontade um consentimento ou uma deliberação, isto é, um livre decreto [já que não há livre-arbítrio, já que ninguém pode decidir-se a amar ou a desejar], nem mesmo um desejo de se unir à coisa amada quando ela está ausente ou de perseverar em sua presença quando ela está presente; de fato, o amor pode ser concebido sem um ou sem outro desses desejos [isto é, sem falta]; mas por vontade entendo o contentamento que existe no amante por causa da presença da coisa amada, contentamento em que a alegria do amante é fortalecida ou, pelo menos, alimentada.

Ao amor, enquanto tal, não falta nada. Se lhe falta seu objeto, o que pode evidentemente acontecer, é por motivos exteriores ou contingentes: a partida do amado, sua ausência, sua morte talvez… Mas não é por isso que o ama! O amor pode ser frustrado, sofrer, estar de luto.

Se a causa de minha alegria desaparece, como eu não seria infeliz? Mas o amor está na alegria, mesmo que ferida, mesmo que amputada, mesmo que atrozmente dolorosa quando a magoam, e não nessa ausência que a dilacera. Não é o que me falta que eu amo; o que eu amo é que às vezes me falta. O amor é primeiro: a alegria é primeira. Ou antes o desejo é primeiro, a potência é primeira, dos quais o amor, no encontro, é a afirmação regozijante. Adeus Platão e seu demônio! Adeus Tristão e sua tristeza! Considerando-se o amor em sua essência, isto é, pelo que ele é, não há amor infeliz.

E tampouco há felicidade sem amor. De fato, observemos que, se o amor é uma alegria que a idéia de sua causa acompanha, se todo amor, portanto, em sua essência, é alegre, a recíproca também é verdadeira: toda alegria tem uma causa (como tudo o que existe), toda alegria é, pois, suscetível de amor, pelo menos virtualmente (uma alegria sem amor é uma alegria que não compreendemos: é uma alegria ignorante, obscura, truncada), e de fato o é, quando plenamente consciente de si mesma e, portanto, de sua causa. O amor é como que a transparência da alegria, como que sua luz, como que sua verdade conhecida e reconhecida. É o segredo de Spinoza, e da sabedoria, e da felicidade: só há amor alegre, só há alegria de amar.

Acusar-me-ão com isso de dourar a pílula… Mas não. Estou esquematizando, é preciso, como fiz no caso de Platão, mas sem trair nem enfeitar. Se não reconhecemos as cores mais matizadas, mais confusas, mais misturadas de nossa vida, é porque alegria e tristeza se mesclam, claro, é porque não cessamos de hesitar, de oscilar, de flutuar entre esses dois afetos, entre essas duas verdades (a de Platão, a de Spinoza), entre falta e potência, entre esperança e gratidão, entre paixão e ação, entre religião e sabedoria, entre o amor que só deseja o que não tem e quer possuir (Eros) e o amor que tem tudo o que deseja, pois só deseja o que existe, o que desfruta e de que o regozija - aliás, como vamos chamá-lo?

Em francês, é amour: amar um ser é desejar que ele exista, quando existe (senão, apenas se espera), é desfrutar sua existência, sua presença, o que ele oferece em prazeres e alegrias. Mas a mesma palavra vale também, como vimos, para a falta ou a paixão (para Eros), prestando-se por isso à confusão.

O grego é mais claro, pois utiliza sem hesitar o verbo philein (amar, qualquer que seja o objeto desse amor) e, sobretudo, para as relações interpessoais, o substantivo philia. Amizade? Sim, mas no sentido lato do termo, que também é o mais forte e o mais elevado. O modelo da amizade, para Aristóteles, é antes de mais nada "a alegria que as mães sentem ao amar seus filhos", é também "o amor [philia] entre marido e mulher", especialmente quando "cada um dos dois deposita sua alegria na virtude do outro", é também o amor paterno, fraterno ou filial, mas também o amor dos amantes, que erôs não poderia conter nem esgotar por inteiro, é enfim a amizade perfeita, a dos homens virtuosos, os que "desejam o bem a seus amigos por amor a eles", o que faz deles "amigos por excelência". 

Digamos a palavra: philia é o amor, quando desabrocha entre humanos e quaisquer que sejam suas formas, contanto que não se reduza à falta ou à paixão (ao erôs). A palavra, portanto, tem uma extensão mais restrita que o francês "amour" (que também pode valer para um objeto, um animal ou um deus), porém mais ampla que nossa "amizade" (que não se diz, por exemplo, entre filhos e pais). 

Digamos que é o amor-alegria, na medida em que é recíproco ou pode sê-lo: é a alegria de amar e ser amado, é a benevolência mútua ou capaz de se tornar mútua, é a vida partilhada, a escolha assumida, o prazer e a confiança recíprocos, em suma é o amor-ação, que se opõe por isso a erôs (o amor-paixão), mesmo que nada proíba que possam convergir ou ir de par. Que amantes, se são felizes juntos, não se tornam amigos? E como seriam felizes se assim não fosse? 

Aristóteles percebe que "o amor [philia] entre marido e mulher" é uma das formas da amizade, sem dúvida a mais importante (pois "o homem é um ser naturalmente propenso a formar um casal, mais até que a formar uma sociedade política"), e que essa forma inclui evidentemente a dimensão sexual.

É o que me autoriza a retomar a palavra philia para distinguir, mesmo em nossa vida amorosa, o amor-alegria (o amor segundo Spinoza) do amor-falta (o amor segundo Platão), como me autoriza esta fórmula bem spinozista de Aristóteles: "Amar é regozijar-se". Isso não valeria para a falta e basta para distingui-los.

Pelo menos em teoria. Na prática, esses dois sentimentos podem de fato se misturar, como vimos, e quase sempre se misturam, especialmente entre homens e mulheres. Podemos nos regozijar (philia) com o que nos falta (erôs), querer possuir (erôs) aquilo cuja existência já é uma felicidade (philia), em outras palavras, amar apaixonadamente, ao mesmo tempo que alegremente. Isso não é raro, é mesmo o quinhão cotidiano dos casais… sobretudo quando começam. 

Estar apaixonado é ter falta, quase sempre, é querer possuir, é sofrer se não for amado, é temer não o ser mais, é esperar a felicidade unicamente do amor do outro, da presença do outro, da posse do outro. E que felicidade, de fato, se somos amados, se possuímos, se desfrutamos aquilo que nos falta! Sem dúvida porque podemos viver mais intensamente (postos de lado o horror e, talvez, a sabedoria) e melhor. A paixão feliz: a primavera dos casais, sua juventude, essa alegria ávida dos namorados que se beijocam nos bancos das ruas, como dizia Brassens, e que são, de fato, muito simpáticos, como ele também dizia, ou comoventes, por essa mescla de entusiasmo e tolice…

Mas como isso poderia durar? Como poderia nos faltar por muito tempo o que temos (em outras palavras, nos faltar o que não nos falta!), como poderíamos amar apaixonadamente aquele ou aquela com que partilhamos a vida cotidiana, desde há anos, como poderíamos continuar a idolatrar aquele ou aquela que conhecemos tão bem, como poderíamos sonhar com o real, como poderíamos continuar apaixonados, numa palavra, e que palavra, por nosso cônjuge? A cristalização, para falarmos como Stendhal, é um estado instável, que sobrevive mal à estabilidade dos casais.

A princípio tudo parece maravilhoso no outro; depois o outro aparece como é. Lembramos a canção de Claude Nougaro: "Quando o marido mau mata o príncipe encantado…" É o mesmo indivíduo, porém, mas um sonhado, desejado, esperado, ausente… o outro desposado, convivente, possuído - presente.

O príncipe encantado é simplesmente o marido que falta; e o marido, o príncipe encantado com quem ela se casou, e que não falta mais. Um brilha por sua ausência, o outro é sem lustre por sua presença. Breve intensidade de paixão, longa morosidade dos casais… Nietzsche viu bem que o casamento, se podia ser uma aventura exigente e bela, na maioria das vezes nada mais era que mediocridade e baixeza:
Ai! Essa miséria da alma a dois! Ai! Essa imundície da alma a dois! Ai! Esse lamentável bem-estar a dois! […]

Fulano partiu como um herói em busca de verdades; capturou apenas uma mentirinha adornada. Chama a isso seu casamento. […]

Muitas breves loucuras - é o que vocês chamam de amor. E a essas breves loucuras o casamento põe fim - por uma longa tolice.

É a senhora Tristão, ou a senhora Romeu, ou Madame Bovary, e elas irão com freqüência, a cada ano, se parecer cada vez mais. Quanto ao marido, sempre pensa mais no sexo e no trabalho, cada vez menos no amor ou em sua mulher, a não ser pelas preocupações que ela lhe dá, seus estados de espírito, suas censuras, seus humores…

Ele gostaria da paz e do prazer; ela gostaria da felicidade e da paixão. E cada um censura o outro por não ser, ou não ser mais, o que havia esperado, desejado, amado, cada um lamentando que o outro seja, infelizmente, apenas o que é…

Como poderia ser outra coisa, e de quem é a culpa, se a paixão não passa de um sonho e é preciso acordar dele? "Eu a amava por seu mistério", diz-se ele.

É confessar que a amava porque não a conhecia, e que deixou de amá-la porque a conhece. "Amamos uma mulher pelo que ela não é", dizia Gainsbourg, "a deixamos pelo que ela é."

Isso costuma ser verdade e vale também para os homens. Há quase sempre mais verdade no desamor do que no amor, pelo menos nesse amor, fascinado pelo mistério do que ele ama, do que ele não compreende e que lhe falta. Amor engraçado esse, que só ama o que ignora.

Tentemos, porém, compreender o que acontece nos outros casais, os que dão mais ou menos certo, os que dão inveja, os que parecem felizes e ainda parecem se amar, e se amar sempre…

A paixão intacta, hoje mais que ontem e bem menos que amanhã? Não acredito nisso, e, ainda que isso acontecesse vez por outra, ou que pudesse acontecer, seria tão raro, tão milagroso, tão independente de nossa vontade, que não poderíamos tomar isso como base de uma opção de vida, nem mesmo de uma esperança razoável.

De resto, não corresponde à experiência dos casais em questão, que nada têm de pombinhos e que cairiam na risada, na maioria dos casos, se alguém os comparasse a Tristão e Isolda… Simplesmente esses amantes continuam a se desejar e, por certo, se vivem juntos há anos, é mais potência que falta, mais prazer que paixão, e quanto ao mais souberam transformar em alegria, em doçura, em gratidão, em lucidez, em confiança, em felicidade por estar juntos, em suma em amor, a grande loucura amorosa do começo.

A ternura? É uma dimensão de seu amor, mas não a única. Também há a cumplicidade, a fidelidade, o humor, a intimidade do corpo e da alma, o prazer visitado e revisitado ("o amor realizado do desejo que permanece desejo", como diz Char), há o animal aceito, domesticado, ao mesmo tempo triunfante e vencido, há essas duas solidões tão próximas, tão atentas, tão respeitosas, como que habitadas uma pela outra, como que sustentadas uma pela outra, há essa alegria leve e simples, essa familiaridade, essa evidência, essa paz, há essa luz, o olhar do outro, há esse silêncio, sua escuta, há essa força de ser dois, essa abertura de ser dois, essa fragilidade de ser dois…

Constituir apenas um? Faz muito tempo que renunciaram a isso, se é que um dia acreditaram nisso. Amam demais seu duo, com seus harmônicos, seu contraponto, suas dissonâncias às vezes, para querer transforma-lo em impossível monólogo!

Passaram do amor louco ao amor sensato, se quisermos, e bem louco seria quem visse nisso uma perda, uma diminuição, uma banalização, quando é ao contrário um aprofundamento, mais amor, mais verdade, e a verdadeira exceção da vida afetiva. 

O que há de mais fácil de amar do que seu sonho? O que há de mais difícil de amar do que a realidade? O que há de mais fácil do que querer possuir? O que há de mais difícil do que saber aceitar? O que há de mais fácil do que a paixão? O que há de mais difícil do que o casal?

Apaixonar-se está ao alcance de qualquer um. Amar não.

Quando de um colóquio sobre o amor, ouvi esta confissão espantosa: "Prefiro viver uma pequena paixão a uma grande amizade." Tristeza da paixão, egoísmo da paixão, estreiteza da paixão! É amar apenas a si, a seu amor (não o outro, mas o amor que se tem por ele), suas pequenas palpitações narcísicas.

A verdade é que não é preciso escolher entre paixão e amizade, pois podemos viver as duas, como a experiência prova, já que a paixão não obriga a esquecer os amigos e que ela mesma só tem futuro se for baseada na amizade.

A paixão não pode durar: é preciso que vire amor, e com ele o prazer mais profundo e feliz. Querer a qualquer preço ser fiel à paixão é ser infiel ao amor e ao devir, é ser infiel à vida, que não poderia se reduzir aos poucos meses de paixão feliz (ou aos poucos anos de paixão infeliz…) que teremos vivido.

Além do mais é ser infiel de antemão aos que amamos, inclusive apaixonadamente, submeter o amor que temos por eles ao incontrolável da paixão. Grande fórmula de Denis de Rougemont: "Estar apaixonado é um estado; amar, um ato."

Ora, um ato depende de nós, pelo menos em parte, podemos quere-lo, empenhar-nos nele, prolonga-lo, mantê-lo, assumi-lo… 

Mas e um estado? Prometer continuar apaixonado é se contradizer nos termos. Seria como prometer que teremos sempre febre, ou que seremos sempre loucos.

Todo amor que se compromete, no que quer que seja, deve empenhar outra coisa que não a paixão.
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AMOR – Conto – Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria.

O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração.

De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.

Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão.

Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
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