O título parece complicado, mas não é. Metáforas são figuras de linguagem que substituem uma coisa por outra. São indispensáveis na expressão da vida. Por exemplo: o coração, que é um órgão do corpo humano passível de cirurgia, palpitação e substituição, é uma metáfora do amor - essa "coisa" também cheia de truques que escapa dos procedimentos objetivos e tem regras que, como dizia o grande Pascal (e o cada vez mais atual Freud), ele não suspeita. Há, li outro dia no "The New York Times", um debate se as carruagens devem ser mantidas ou não em Manhattan. Como toda metáfora, elas são um contrassenso. Pois quem colocaria a "mão no fogo pelo governo" que recebeu, mas não se livra, dessa onda de pobreza intelectual, de ausência de percepção institucional e sociológica que abunda hoje no Brasil? E quem seria capaz de defender carruagens neste mundo contemporâneo onde existe um índice (e logo um marco regulatório) para a felicidade e para a atividade sexual?
Carruagens num mundo de trens, aviões e automóveis são algo tão anacrônico, tanto quanto as "liturgias", como diz Sarney, que, no Brasil, gastamos para manter certos cargos e estruturas governamentais configuradas pela nossa vocação aristocrática. Mas - como toda metáfora - as carruagens não são meios para fins, são - como os salários e as sinecuras dos nossos governantes - fins para meios. Elas ritualizam, tal como fazem os exageros e as anedotas, o modo de viajar não dando a mínima para o elo direto ou racional entre meios e fins. Por isso você pega um carro quando está com pressa e entra numa carruagem em Manhattan quando quer criar um clima romântico e viver um gozo que lhe confirma o sofrimento no qual você estava engolfado.
Vamos de bonde?
Não, vamos a pé...
Eu, esse vosso cronista confuso, misto de acadêmico marginal e escritor bastardo, produzi exatamente essa resposta em algum dia de 1951, em Juiz de Fora, quando fui buscar a Zelinha no ensaio do teatro do colégio em que ela estudava. Era um dia chuvoso e nós andamos da Rua Halfeld até o Alto dos Passos debaixo de um mesmo guarda-chuva, o que me permitia ficar fisicamente próximo do ser idolatrado.
Preferi o caminhar (que é velho e lento) ao bonde (que, naqueles tempos antigos, era veloz e confortável). Mas, em compensação o "passeio" sinônimo do andar sem rumo - metáfora do andar lado a lado -, essa raridade, esse caminhar junto (metafórico do peregrinar, do pertencer e do estar com o outro), subvertia os meios e os fins como a melhor prova de que estava apaixonado, tal como eu hoje enxergo que são essas substituições que nos tornam humanos. Só nós podemos realizá-las. Nem os anjos (que são perfeitos, mas não se reproduzem) nem animais (que são imperfeitos e se reproduzem além da conta) sabem o que é esse pertencer sofrido que vem de dentro para fora - como exprime o coração humano que está dentro e, ao mesmo tempo fora de nós.
Entendem-se, então, as carruagens e as liturgias de Sarney. Elas não estão ali para transportar ou ajudar a servir melhor o povo e a sociedade, mas para criar um clima romântico e para garantir uma opulência que beira ao desperdício - esse mal do Brasil. Num caso, a lentidão que faz da disciplina amorosa e romântica; no outro, a transformação do republicano num reino de Jambon onde poucos comem muito sem fazer nada e muitos comem pouco fazendo tudo.
Eu estou convencido que o futebol, inventado à revelia pelos brilhantes e reprimidos ingleses do período vitoriano, é uma das mais recorrentes metáforas da vida (e dos seus dilemas) tal como ela é idealizada entre nós. Nele, queremos o futebol "arte", o estilo dionisíaco de Gilberto Freyre e malandro - cheio de jogo de cintura, como mostrei faz tempo, mas exigimos "resultados" e "objetividade": no caso, muitos gols. Eis o dilema: como conciliar o belo com o técnico. Como ajudar o povo sem impedir que uma centralização neostalinista voltada para permanecer no poder produza fraudes, corrupção e impunidade? Como misturar um estilo de jogo personalístico, baseado na superexcelência de alguns craques que reinventam uma aristocracia no campo, com o jogo com e pelo time, que, como enfatizam os nossos teóricos do futebol, levam a uma identidade social especifica - essa marca das grandes seleções?
Em outras palavras, como submeter todos a regra da lei e da coletividade (o time) se não dispensamos os salvadores da pátria, os messias do futebol - os que salvam os jogos dando a vitória ao nosso Brasil, gente como Ademir, Zizinho, Rivelino, Zico e tantos outros, para não mencionar a realeza do Príncipe Didi e do Rei Pelé ou o "fenômeno" que era o nosso Ronaldo?
Eu me pergunto se essa busca da arte com (e não contra) a técnica; da justiça que vale para todos e leva à punição dos faltosos com a compaixão que distingue e perdoa; da lei universal que iguala com as amizades singulares que distinguem, não seriam as conjugações que implícita ou inconscientemente temos tentado declinar no Brasil. E se não é tempo de não tomar partido e saber de que lado nos situamos. Mas o que é que não cabe dentro de um sonho? E o futebol, como a poesia, é ótimo para sonhar e para revelar essa busca pelas causas perdidas. Ou para voltar ao começo, esse querer andar de carruagem em Manhattan.