Eu estava do outro lado da rua quando ele apareceu, virando a esquina. Andava sem aparentar muito esforço, empurrando por cima da calçada seu carrinho repleto de pedaços de madeira, papelões e caixas, numa pilha imensa, amarrada com capricho. Era forte e ágil, apesar da idade, e chamava a atenção pelo contraste entre a cabeça branca e a força que parecia ter nos braços. Era o que no Rio, desde os tempos antigos, se chama de burro-sem-rabo.
Sempre que vejo um deles passando na rua, paro e observo. Eles me fascinam. Há uma grandeza nesse trabalho bruto, na humildade desses homens que andam encurvados, puxando ou empurrando seus carrinhos, usando o corpo como instrumento de força.
Outro dia, folheando um livro com fotografias de Marc Ferrez, tiradas no século dezenove, parei numa página dupla, com uma imagem captada em 1899. Era uma foto da antiga Estação D. Pedro II, com sua esplanada de paralelepípedos, cheia de gente. A legenda dizia que ali, parados diante da estação, estavam exemplos de todos os tipos de transporte da época: o landau, a vitória, o carroção, o tílburi, o bonde puxado a burro, o carrinho de mão. Observei melhor a foto. O tal carrinho de mão era um burro-sem-rabo. O mesmo pranchão de madeira sobre uma estrutura de ferro, os mesmos puxadores, as duas rodas. Olhando-o assim, ninguém diria que, de todos aqueles meios de transporte, seria o único a continuar circulando depois que o relógio dos séculos virasse duas vezes.
Foi pensando nisso que continuei ali, do outro lado da rua, olhando o burro-sem-rabo que passava na calçada. De repente, ele parou. Parou com um tranco. A roda do carrinho parecia ter esbarrado em alguma coisa. Eu, que observava à distância, percebi que era um desnível da calçada, cujo cimento fora talvez deslocado por uma raiz. Mas o homem, com a visão toldada pela enorme pilha de papel e madeira, não conseguia ver o que se passava. Tentou e tentou, deu marcha-a-ré, forçou várias vezes – e nada. Comecei a ficar aflita. O carrinho estava empacado.
Só depois de muito esforço, ele conseguiu ir em frente – para meu alívio. Mas não tinha andado nem vinte metros quando parou de novo, dessa vez num trecho onde a calçada se alargava, sob uma árvore centenária. Cheguei a pensar que as rodas do carrinho estivessem novamente presas, mas logo vi que não. O homem remexeu no bolso e dele tirou um saco plástico. No mesmo instante, foi cercado por dezenas de rolinhas.
A cena me enterneceu. Ele jogava milho para elas. Talvez o fizesse sempre que passava por ali, porque as rolinhas pareciam conhecê-lo, cercando-o, quase vindo comer em sua mão. Quando o homem se pôs novamente em marcha, elas se alvoroçaram, como se pedindo mais.
E lá se foi o burro-sem-rabo, empurrando seu carrinho imenso, os passarinhos voejando em torno. Parecia o final de um filme de Carlitos.
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