Seu pai o despertou lhe dizendo que era o dia de retirar os pontos. Dia 24 de dezembro, mas ele não tinha a menor ideia. Acordou e permaneceu deitado, tudo estava muito estranho. Ele se sentia muito estranho. Não tinha noção de que dia era aquele, nem de quanto tempo havia dormido, o que, até aquele momento, pensava ter sido um sono normal. Nunca se sentira daquela forma. O corpo fraco, tremolo, a cabeça não encontrava um ponto de equilíbrio sobre seu pescoço e parecia pender para os lados. Uma intensa coriza começou a escolher-lhe pelo nariz.
Passou a mão no rosto e sentiu o curativo grande no supercílio direito. Lembrou-se do acidente. Um pensamento racional no meio daquele caos mental o fez dar-se conta que havia passado muito mais tempo do que imaginava.
Levantou-se com dificuldade. Quando deu por si já estava deitado no banco de trás do carro do pai. As superquadras de Brasília possuem quebra molas enormes e sua cabeça sente cada solavanco. Deve estar resfriado, ainda bem que trouxe um rolo de papel higiênico para dar conta dessa coriza horrorosa. Quando assua o nariz sente uma pontada aguda na cabeça e ouve um barulho vindo de dentro do crânio.
Quando o pai para na entrada do Hospital das Forças Armadas, mal consegue saltar do carro, no que foi ajudado por não sabe quem.
Apoiando-se no bom samaritano, foi conduzido até a entrada do prédio, enquanto seu pai fora estacionar o carro. Ouvia sua cabeça fazer uns barulhos esquisitos, nunca havia sentido aquilo. Seu nariz escorria numa coriza que nunca tivera antes. De repente, ouve uma voz elevar-se com autoridade:
- Tragam uma maca imediatamente para esse rapaz!
Era um médico e o rapaz era ele.
Deitaram-no numa maca que chegou junto com seu pai que vinha do estacionamento.
Ele não tinha a menor ideia do estava acontecendo, estava confuso e assustado. Sentiu-se frágil e indefeso. Não parecia um pesadelo, parecia real.
O médico lhe fez algumas perguntas que seu pai o ajudou a responder. Só então se deu conta de que dormira mais de uma semana e não se lembrava de nada do que acontecera nesse ínterim. A não ser de ter acordado num dia, com um dor lancinante na cabeça onde levara 10 pontos depois do impacto no chão que lhe rasgou o lado direito da testa. Lembrou que gritou e que pediu para seus pais o levassem para um hospital. Porque não o fizeram? E ele dormiu mais alguns dias.
Não se lembrava de ter acordado nenhuma vez. Não se lembrava de como comera, bebera água, como fora ao banheiro ou como fizera qualquer outra coisa. Um ser humano não sobreviveria por uma semana sem cumprir essas necessidades fisiológicas. Era como se aqueles dias não tivessem existido. Mas, se ele estava ali naquele no hospital, com certeza aqueles dias existiram, pensou.
Deitado na maca, foi se lembrando do acidente e dos momentos consequentes, quando foi levado ao hospital para ser atendido e onde o costuraram o rosto.
Lembrou-se que, naquele momento, já sentia que havia acontecido alguma coisa mais grave com o seu cérebro e pediu que tirassem um raio-X do local da batida (ano 1975 - século XX). Em vez disso, sua mãe convenceu os médicos de que ele estava apenas muito “nervoso” e exagerando o ocorrido, e em vez do exame, lhe aplicaram um calmante endovenoso que o fez dormir e acordar somente uma semana depois (pelo menos era assim na memória dele) naquela maca, esperando para fazer o mesmo exame que ele tanto pedira.
Porque não acreditaram quando ele se queixou da estranha sensação que sentira no cérebro assim que chegou ao hospital, no dia do acidente?
Porque razão sua mãe não acreditara nos graves sintomas dos quais se queixara durante aquele trajeto para o hospital, logo após o violento choque de seu crânio com o chão?
Quando viu seu pai e o médico que o socorrera na entrada se aproximando pelo imenso corredor, foi percebendo que a expressão de ambos era de tensão.
O pai se antecipou ao médico e falou:
- Você vai ter que ser internado.
- O que eu tenho? Perguntou assustado.
O médico tomou a palavra:
- Está com suspeita de fratura de crânio e ruptura da dura-máter. O líquido que estava saindo do seu nariz é o líquido que envolve e estabiliza o cérebro. A dor que você está sentindo é a pressão do ar que entrou quando o líquido saiu. Da mesma forma que o ar entra numa garrafa quando derramamos o líquido.
Antes que ele perguntasse ou esboçasse qualquer reação, um enfermeiro começou empurrar a maca em direção à sala de raios-X.
Ele estava muito assustado, com medo de morrer. Aos 19 anos, nunca havia passado por nada tão sério com relação à saúde ou a acidentes graves. Tudo aquilo que o médico acabara de lhe falar soava muito perturbador.
Os exames foram feitos e confirmou-se o diagnóstico inicial.
Foi levado para o andar da neurologia no HFA e instalado em um quarto branco, estéril e modernoso.
O médico regulou sua cama hospitalar para que a inclinação da cabeça ficasse num ângulo exato e devido. Ele não poderia se levantar para nada, absolutamente nada. Tampouco poderia se virar para os lados, na cama. Deitado de barriga para cima, sem poder ver televisão, ler ou qualquer outra atividade que pudesse exigir, mesmo que minimamente, esforço para o seu cérebro inchado. Não poderia sair daquela posição nem quando estivesse dormindo.
Veio à noite. Ele não acreditava no que estava vivendo.
A chuva intensa que começou a cair e a escorrer pelo vidro da janela parecia tornar aquela noite ainda mais surreal. Uma tristeza que ele não conhecia começou a tomar conta de tudo.
A tempestade fez com que as linhas telefônicas parassem de funcionar, o que não era raro naquele tempo, isolando-o ainda mais da vida.
Naquela noite de Natal suas únicas companhias foram o medo da morte, a solidão, o abandono e a ausência doída de todos que amava. E as lágrimas lhe caíram até que o sono o vencesse.
Nunca entendeu porque sua mãe, seu pai e seus irmãos o abandonaram, daquela forma, durante um momento tão grave e crítico, quando acabara de saber que corria perigo de morte.
Naquele Natal, quando ele mais precisava, todos estavam ausentes, ocupados comemorando em família.
Nunca
mais gostou do Natal.
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